Rio de Janeiro, cidade mulher
Vamos falar com muita franqueza, chegou a hora de unir esforços e pensamentos a favor de uma causa fundamental, mais do que nobre – a busca de uma saída para a crise do Rio de Janeiro. Tudo indica que só resta uma solução para a cidade maravilhosa: chamar as mulheres. Não, não tenho nomes para listar, penso que as competências devem ser assumidas, devemos bradar ‘mãos à obra’ e estamos combinadas.
Para a recuperação da cidade, três eixos de atuação parecem ser prioridade. Parece claro que importa ter frentes de trabalho colossais, com grandes obras de engenharia, por sua capacidade para absorver mão de obra e dinamizar a economia. Provavelmente seria interessante partir para a construção de conjuntos habitacionais, para enfrentar ao mesmo tempo o déficit de casa própria reinante por aqui. E, é claro, dar alguma felicidade aos bancos, sempre tão ávidos. São iniciativas um tanto óbvias. Não atuo nestas áreas, mas reconheço o seu peso. A cidade tem que dar emprego e fazer dinheiro.
A seguir, existem dois campos em que o poder feminino repercute muito: o empreendedorismo e a dupla dinâmica educação e cultura. São segmentos em que se construiu uma sabedoria das mulheres, pois afinal há uma história feminina de comandar famílias e enfrentar o mundo que não pode ser ignorada. Talvez eu esteja falando numa uterotopia – na verdade, uma última esperança para resolver este enigma Brasil, do qual nós, no Rio, ponto nevrálgico absoluto, fazemos parte, através do recurso à inteligência e à capacidade de trabalho notável do belo sexo.
Neste jogo, o teatro deveria ter uma força estrutural absoluta, pois sem dúvida nenhuma o teatro é a arte da recuperação social. No teatro, há empreendedorismo, educação e cultura. Isto se ele puder contar com formas estruturadas permanentes de organização – talvez seja o momento de conceber formas de fomento variadas, além e avante do financiamento pontual de encenações.
Claro que importa discutir a priori o que é teatro. Qual o teatro que se faz? Qual o teatro dos sonhos e desejos? Para quê fazer teatro? As perguntas indicam um alvo muito objetivo – a necessidade de retomar o fluxo da arte como processo de comunicação social ampla. Não adianta, neste quadro, apostar no teatro de pesquisa de linguagem e de invenção de procedimentos. O que está em jogo é o teatro-arte universal, para todos, um pouco aquele conceito de Lorca, coisa distante do teatro-cabeça para minorias esclarecidas. A arte do belo pensamento, do riso e do chiste e não a arte do bocejo.
Com a definição da arte esclarecida, vem a incômoda pergunta: o carioca ainda precisa desta arte? Ela é necessária? O brasileiro de hoje necessita do teatro? A pergunta se faz urgente, imediata, por uma razão bem simples: os teatros, no Rio, estão fechando, desaparecendo do cenário urbano. E nada acontece. Ninguém protesta, a sociedade não reclama. Não sei se seria a mesma coisa se resolvêssemos acabar com os estádios de futebol.
Sim, é verdade, a ruína do teatro carioca não começou agora, nem ontem, ela vem de longe. Faz bastante tempo que os teatros são demolidos sem escândalo. Faz bastante tempo que o teatro não conta com capital próprio para se autofinanciar, como qualquer atividade econômica (precisa passar o pires ou pedir mesada para sobreviver…). E faz tempo que o teatro se tornou uma ocupação diletante de jovens. A classe teatral, hoje, pouco envelhece. A cada década, um número crescente de figuras juvenis desposa a profissão, em geral, aliás, como um fazer não-profissional, para logo se transferir para um trabalho mais convencional e estável. Rentável ou rendoso.
Há algum tempo atrás, vozes experientes afirmavam sem hesitação que o fechamento e a não construção de teatros no Rio eram frutos da especulação imobiliária desenfreada. O Rio passou, no século XX, de uma economia industrial e mais tecnológica, para uma espiral febril de investimento na construção civil, fato que precisa ser pensado com atenção a propósito da crise da cidade. Mas, apesar dos especuladores e dos índices de preço do metro quadrado, não deixaram de surgir grandes farmácias, supermercados, academias de ginástica. E igrejas. Lotados de gente.
Algumas igrejas, duplicações curiosas de ritos mais antigos ou mais populares, abrem e fecham milagrosamente. Podem ser encontradas propostas religiosas aterrorizantes, que atestam a ingenuidade, a ignorância cultural e a falta de escolaridade de boas parcelas da população. Apesar da fragilidade das proposições, os templos ficam cheios, enquanto muitos teatros lutam para não ficar vazios.
Ao que parece, portanto, o teatro, coqueluche da sociedade no século XIX, deixou de se fazer necessário na dinâmica social carioca. As pessoas deixaram de gostar do teatro ou não aprenderam a gostar dele. Ou o teatro deixou de gostar do povo. Neste nó o protagonismo cabe à classe teatral, que permitiu o aparecimento de um fosso entre o desejo do cidadão e a prática da sua arte.
Basta que se considere, para entender o impasse, a expansão do desfile das escolas de samba: o sambódromo, inaugurado em 1984 e praticando preços estratosféricos, ficou pequeno para abrigar o espetáculo do carnaval. E até na Estrada Intendente Magalhães, sob chuva, o povo se aglomera para ver as escolas menores passar. Onde foi que o teatro perdeu a sintonia com a comunidade que o abriga? Como recuperar a distância entre a cena e a rua?
O tema aparece fervilhante com a notícia do fechamento do Teatro Maison de France. Parece um recuo da política cultural francesa no país. O fato dói profundamente em todo e qualquer ser devotado ao trabalho em cultura aqui por uma razão simples: a alma cultural brasileira é francesa. Apesar da colonização portuguesa, ainda que houvesse uma sombra espanhola rondando o poderio português, a matriz lusitana jamais conquistou autonomia criativa diante de Paris. Somos francesinhos tropicais, mesmo que de tamancos – ainda que a nossa França esteja se distanciando tristemente.
Aliás, por tudo isto, e sobretudo por causa do tamanho do país e do poder cultural do Rio frente à nação, não se pode compreender a saída francesa, à francesa. Somos um território importante e estratégico para a difusão da cultura francesa no mundo. A sociedade brasileira pode ser uma presa fácil para o intercâmbio cultural com a França. Muitos projetos e iniciativas poderiam causar impacto na cena cultural.
Alguns exemplos rápidos podem ser citados de imediato. O Instituto Molière, junto ao Liceu Molière, poderia conceber projetos decisivos, importantes para o Brasil, de difusão da cultura francesa. Um exemplo seria a possibilidade de convênios com as escolas de teatro para difundir Molière, Offenbach, Feydeau, para ficar só em três casos históricos, sem falar na dramaturgia francesa contemporânea.
A Escola de Teatro da UFBA trouxe agora mesmo ao país, através da Professora Deolinda Vilhena, o encenador Thomas Jolly – este pode ser o marco inicial de uma história de cooperação internacional, na qual ele viria ao Rio com espetáculos, oficinas, palestras. O Teatro Maison de France seria a cereja do bolo para tais atividades.
Em resumo, diante da crise do Rio, em paralelo com a crise do teatro, a questão é tão simples quanto impositiva: o Rio de Janeiro não pode ficar sem o Teatro Maison de France. Caso não haja qualquer possibilidade de uma sustentação francesa, política, institucional, diplomática e empresarial, para conservar a casa aberta, vale pensar em novos caminhos. Os bancos Santander e Itaú devem, cada qual, um teatro ao Rio de Janeiro. Chegou a hora. Grandes marcas e grandes magazines também podem ter interesse na empreitada.
Em último caso, restam os governos – a esfera municipal, a estadual ou a federal bem podem assumir a dianteira e dissolver o impasse. Por sua localização, o Teatro Maison de France integra uma trama cultural carioca única, um cenário privilegiado inclusive para a formação de plateia. Para equacionar a bela convivência do casal educação e cultura, o teatro está inserido numa região repleta de atrações culturais, adequadas para passeios estudantis oficiais.
Uma semana que se segue ao domingo de celebração da mulher, à semana de posse da nova Secretária de Cultura do Governo Federal, a consagrada atriz Regina Duarte, precisa registrar uma marca ascendente para o poder feminino no país. Cabe, então, dar a partida: iniciar um movimento para a solução do caso Maison de France – a Casa da França, expressão colorida por delicadas nuanças sentimentais em português.
Para nós, casa fala sempre de intimidade, e intimidade com os franceses foi algo que sempre quisemos. Sentimentos femininos, coisas de mulher, hão de bradar alguns distraídos. Nada disto, corrijamos a avaliação apressada: o caso trata antes das delicadezas da alma, atributos essenciais para o cultivo da humanidade nos seus graus de maior elevação.
Amor e elevação interior são sentimentos prioritários no momento. Basta um rápido exame nos cartazes para constatar a existência de uma busca por este lugar de humanização maior. A vibração percorre o novo trabalho do grupo AMOK Teatro, Bordados, estreia desta semana no CCBB, uma peça devotada à visão de temas universais a partir do universo feminino.
Em cena, mulheres veladas, árabes, numa sessão de chá restrita às mulheres, conversam intimidades, falam sobretudo do amor, numa sociedade fortemente tensionada pelo choque entre tradição e modernidade. Ali o lugar da mulher é bastante diferente daquele praticado em nossa sociedade, mas os sonhos, as inquietudes e sobretudo o amor também marcam presença.
Uma outra visão do feminino, diretamente ligada à dinâmica daqui, poderá ser avaliada no Teatro Maria Clara Machado, na Gávea. Lá o mês será dedicado ao teatro feito por mulheres, com opções que marcaram a temporada teatral recente, encontros, debates, leituras dramáticas. A vasta programação pode ser consultada no site do teatro.
Portanto, existe uma onda de ações femininas em curso, em prol do teatro e da cultura. Vale engrossar o caldo, contribuir para banhar o Rio com o grande alimento da cidade, a vida cultural. Trabalhar duro é a alternativa, se existe em nós amor profundo e verdadeiro por esta velha capital decadente chamada Rio de Janeiro. Merecemos ver renascer a grandeza cultural desta cidade.
Serviço
BORDADOS (teatro)
Centro Cultural Banco do Brasil – RJ / Teatro III
Rua Primeiro de Março, 66 – Centro, Rio de Janeiro – RJ,
11 de março a 03 de maio 2020 às 19h30
Ingressos: R$ 30,00 inteira / R$ 15,00 meia
Classificação etária: 12 anos
80 lugares
Duração: 80 minutos
Ficha Técnica
Texto e direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Elenco
Fathmeh – Carmem Frenzel
Massarat – Flávia Lopes
Hiba – Jacyam Castilho
Khadija – Sandra Alencar
Nesrine – Vanessa Dias
Walla – Vania Santos
Iluminação: Renato Machado
Assistente de direção: Gustavo Damasceno
Cenário e figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Músico: Rudá Brauns (off), Vanessa Dias e elenco (live)
Direção musical: Stephane Brodt
Edição de som: Gabriel Petit
Operador de Luz: João Gaspary
Operadora de Som: Julia Limp
Produção: Amok Teatro
O projeto tem patrocínio do Banco do Brasil através da Lei de Incentivo Federal.
Informações para a imprensa:
LEAD Comunicação / Flávia Tenório