O teatro e o tempo: sobreviver à peste
Uma situação surpreendente: depois de tanta história, de contar com tantos artistas magistrais e de produzir tantas obras belas, o teatro brasileiro se vê solto no ar, em pleno voo, como se mergulhasse num abismo tenebroso. O passado povoado por tantos esforços, marcado por tantos feitos, não trouxe qualquer estabilidade para a prática da arte. Talvez em razão de tensões históricas profundas.
Curioso observar que existe um saldo social razoável do teatro brasileiro. O que seria exatamente esta expressão – saldo social? Seria a capacidade do teatro de atrair, encantar a sociedade ao redor, dialogar com a sensibilidade dos contemporâneos, para instaurar formas de expressão, de sentimento, de pensamento. Em resumo, aí estaria a necessidade e a função da arte – para isto é que ela existe, por isto ela é procurada.
No entanto, há um grande mistério envolvendo o teatro nacional. Apesar do trabalho social extenso, durante pelo menos três séculos, a solidão da arte parece ser a nota dominante. A nossa arte aconteceu sob forma episódica, na verdade. A dispersão se impõe com tal ordem de grandeza que a indiferença, hoje, nasce de forma surpreendente, a partir do Estado e até dentro da classe. Regredimos?
Nem D. João, no pântano instável da era napoleônica, foi tão indiferente ao teatro, aqui. Influenciado pela nascente ideia iluminista de que o teatro era a grande escola da humanidade, chave privilegiada para a elevação da sociedade, para burilar a moral e os bons costumes, o príncipe regente aceitou colaborar para a construção do Real Teatro de São João. Cedeu as pedras da velha Sé, algum dinheiro.
Sim, retrocedemos, portanto. Retornamos ao pensamento conservador religioso anterior ao século XVIII, às ideias canhestras capazes de atribuir à cena um poder efetivo de duplicar o mundo, logo um malefício herege, diabólico até, preocupado em ofuscar a ideia de Deus. Neste quadro, o teatro deve ser relegado a sua potência mínima. Isto é, à força criadora dos que nascem artistas e se dedicam a criar, condenados a vagar esmolando pelas praças, mercados e castelos nobres, reduzidos à própria sorte. A coisa faz sentido, infelizmente.
Assim, em vez de uma Secretária de Cultura, conquistamos uma espécie de reedição da D. Carlota Joaquina. Tudo o que o Brasil não precisava neste momento era uma exumação da megera espanhola devotada ao ódio ao país. Só o ódio ao país explica a indiferença incompetente à crise.
Mas é o que temos, lamentavelmente. Foi o papel que a atriz Regina Duarte decidiu representar, para o horror de tantos que acreditaram – eu própria – que ela poderia se tornar uma possibilidade de diálogo com um governo resistente ao reconhecimento da importância da arte na sociedade do século XXI.
O episódio traduziu uma falência humana e uma falência artística. A indiferença – ou pior, o deboche – diante de uma situação cotidiana de perda, de morte, resultante de uma pandemia de proporções históricas monumentais, afronta qualquer ser humano. E o descaso para com a crise do teatro atesta a triste condição da secretária: realmente, ela não é mais artista. Nenhum artista pode se dar o luxo de ignorar o impasse radical imposto ao teatro hoje. Quando o teatro é abandonado por todos, ele tem os artistas, não dá para renegar o métier.
Portanto, após a entrevista da atual Secretaria Especial de Cultura, Regina Duarte, à CNN, em que ela deveria apresentar o seu estudo da área, realizado ao longo de sessenta dias, e o seu projeto de trabalho, quer dizer, as suas propostas para a gestão do setor, a solidão da cultura brasileira, em particular do teatro, se tornou absoluta. Preocupada em preservar o cargo, ameaçado por diversos vetores dentro do governo, a Secretária demonstrou não ter formulado qualquer projeto relevante: não tinha o que falar.
A sua performance, insegura e inadequada para a situação atual do país e do mundo, limitou-se à apresentação de um ideário de engajamento político raso. O mais espantoso é que o seu desempenho foi frágil até mesmo para tentar construir uma imagem favorável do atual governo na sociedade, num momento em que a popularidade do presidente tem declinado bastante. Se a escalada de morte prosseguir, como tudo indica, a Secretária se tornará nociva para o governo. Com seus risinhos constrangedores e seu ar saltitante pseudo-adolescente, ela irá assegurar ao povo que a alta administração do país não se importa com a tragédia nacional.
Neste jogo, uma nova condição surgiu para a gerência da crise teatral. Não há, evidentemente, interlocução possível com a Secretaria de Cultura, pois a nova ocupante da cadeira demonstrou total desconhecimento da crise teatral avassaladora vivida pela classe e, o que é pior, o mais completo desinteresse pelo diálogo e pela interlocução. Simplesmente a nova Secretária não conhece a pasta que assumiu, não conhece o teatro brasileiro e não tem ideia do que acontece hoje na cena do país. Repleta de certezas, as suas certezas estão muito distantes da realidade do teatro e da cultura em geral.
Portanto, as vias de negociação disponíveis para a proposição de um diálogo com o governo, em função de direitos constitucionais e legais, são outras – resta à categoria o recurso à rede parlamentar e aos executivos locais, dos estados e municípios. Esta nova realidade reforça a necessidade de contar com uma organização forte da classe teatral, a partir de associações, sindicatos, cooperativas, grêmios. Todo o apoio deve ser dado à APTR e a Eduardo Barata, no Rio, e à APTI e a Odilon Wagner, em São Paulo, cabeças atuais da luta contra a crise.
Vale reconhecer, no cenário sombrio, aspectos positivos. O primeiro está na união em escala crescente da classe teatral, solidária aos profissionais que, surpreendidos pela pandemia, deixaram de receber o pouco que conseguiam para garantir o jantar. As campanhas de doação e de solidariedade têm funcionado como excelente cimento humano, disseminando uma consciência notável do outro, da necessidade de estar junto e ajudar, seja com quanto for.
O processo deverá sofrer uma ampliação considerável, à medida em que se torne cada vez mais nítida a situação de calamidade, com retorno imprevisível ao trabalho. A partir da percepção de que a arte está em suspenso, novos mecanismos de ajuda mútua deverão ser concebidos. A mobilização da sociedade e do Estado, então, se tornam prioridade.
Paralelamente, há a discussão a respeito de como voltar, quando a arte voltar – e pensando nisto, importa agir, trabalhar agora, descobrir formatos para não parar. Surge uma angústia corroendo a alma, com a ameaça-fantasma de que o teatro possa vir a ser esquecido, se torne uma arte ultrapassada pelo estado de doença, banido por um isolamento social permanente. É só medo, claro. O teatro não vai acabar.
Surgem soluções. A internet se tornou um abrigo para inúmeras propostas de trabalho teatral. A última live da APTR registrou o encontro emocionante de três musas preciosas da cena – Eva Wilma, Léa Garcia e Nicette Bruno. Histórias teatrais e histórias de vida únicas, carreiras notáveis no palco, astral elevado, alegria contagiante, fatos curiosos, sabedoria e carpintaria profissional – de tudo aconteceu na tela do computador, sob a mediação precisa de Eduardo Barata. Outros encontros valiosos foram feitos, novos acontecerão.
E há ainda peças de teatro na íntegra, conversas, números musicais, performances. Cláudio Tovar apresenta o Diário de um Louco, de Gogol, no cenário curioso de sua deslumbrante oficina de artesanato, com um figurino que, por si, já vale a noite. A apresentação está dividida em episódios, filmados por Lucinha Lins.
O que isto tudo significa? Para quem gosta de teatro, a arte está viva, palpitante, com opções adequadas para todos os gostos e inclinações. On line, as fronteiras nacionais explodem – como estamos numa pandemia, o teatro universal também se dá em oferta, generoso. Além da cena europeia e da cena americana, o mundo encantado dos grandes museus está ao alcance por um clique. É só pesquisar e escolher.
A alegria de constatar que a cena acontece mesmo sob uma tensão universal tão violenta ajuda a equilibrar a dor das perdas, pessoais e artísticas. Vale perceber que a nossa dor aqui será imensa, para quem se importa com a vida. Hesitamos em ser firmes diante do mal, ele se espalha mais amplamente. No descaso brasileiro, parece impossível projetar um quadro de progressão da doença, dimensionar o grau de tragédia: pagaremos a hesitação com mais vidas e com a ampliação das possibilidades de falência.
A hipótese traz à lembrança uma constatação um pouco assustadora. A relação brasileira com a dor parece ser, no mínimo, bem estranha. Somos um país bruto. Sem pesquisas históricas exaustivas, não temos um registro efetivo, preciso, das cicatrizes provocadas pelas pestes nacionais na história do nosso palco.
Sabemos, graças à história oficial, que o século XIX foi um século pestilento – tifo, peste bubônica, varíola, febre amarela, dengue, malária assolaram o país. As doenças, várias vezes retratadas nos palcos das revistas de ano, varreram os tablados e fecharam as cortinas diversas vezes, mataram vários atores, mas esta história ainda não foi escrita.
O hábito de veranear – sair do Rio especialmente para Petrópolis ou Teresópolis – está ligado a esta condição, fugir das pestes. Em consequência, as companhias partiam para mambembar pelo território e muitas vezes, em especial no Norte, acabavam desmanteladas… pelas pestes ou febres. Contudo, não restou nem mesmo a memória afetiva destes fatos.
Conclusão lógica: quem pretende gerenciar o teatro brasileiro se dispõe a enfrentar um desafio colossal. Pois estará diante de uma história oficial, repleta de lacunas, e uma história subterrânea, não contada, que importa pesquisar e pensar. O resultado natural é o fragmentário. Existe uma multiplicidade inacreditável de fatos, feitos, gentes, demandas, necessidades, realidades fervilhantes, no aqui-agora, um pouco filha desta história por escrever.
Assim como o território nacional parece uma colcha de retalhos contrastantes, o teatro brasileiro parece obra de um químico louco. Ele persiste sendo um cadinho de múltiplas poéticas, reunidas numa mistura heterogênea, muitas vezes sem liga.
Elaborar uma política para esta realidade requer duas qualidades básicas essenciais – o conhecimento vivido e sofrido desta dinâmica, resultado da prática pulsante cotidiana, e uma combinação explosiva de amor e devoção ao teatro. Não dá para enfrentar este mundo mágico com a frivolidade de uma rainha maléfica, repleta de ódio, incapaz de resiliência. Sem olhar o outro, o teatro não acontece. A arte do palco não deve ser um voo cego, sem rumo, contrário ao ser em sociedade. Se os fatos nos lançaram num voo da morte, a saída é recusar a solidão: vamos lutar juntos pelo teatro.
SERVIÇO:
Imagem: retrato equestre de Carlota Joaquina, Museu Imperial de Petrópolis
Pesquise na internet opções teatrais adequadas ao seu gosto. Alguns exemplos:
TERÇA FEIRA – 12 DE MAIO DE 2020 – 20H – Gustavo Gasparani e Laila Garin, Live sobre teatro musical – @teatroriachuelorio
Cena do Espetáculo AUÊ – https://youtu.be/.tASilGDR64c