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A fome teatral e os arquitetos da solidão

Esculhambar é moleza, diria Nelson Rodrigues. É fácil reclamar do trabalho alheio, ver os defeitos dos outros. Depois de algum tempo atuando como crítico, qualquer criatura, qualquer Dorothy Dalton, mesmo o ser mais limitado intelectualmente do mundo, percebe como é fácil achar defeito no trabalho do vizinho. Duro é arrumar a própria casa.

Dá para olhar para a Mona Lisa e sentenciar: este sorriso não funciona, é enigmático demais, não explicita o espírito da moça. Ou contemplar O Discóbolo e demolir: tudo muito proporcional, muito certinho, sem surpresa, arte velha.

O desafio de verdade é olhar uma obra e dimensionar o pensamento – ou a negação do pensamento – que o artista propôs. Formular um ponto de vista a respeito do sorriso sugerido nos lábios da mulher pintada por Leonardo, expor a Grécia clássica latente na obra de Mirón, aí, sim, se insinua algo do pensamento crítico que importa para a marcha da humanidade.

A coisa fica mais tensa quando precisamos dar conta dos nossos atos, escolhas, obras. Vale ir direto ao fogaréu. O que nós fizemos para que o palco ao nosso redor esteja como está? Temos a força do espírito crítico legítimo para pensar o que fizemos? Como atuamos para empurrar o teatro para a mais sombria orfandade social?

Sim, esta é a nossa condição agora, a situação que conta para nós amantes do teatro. Nenhum outro artista, de nenhuma outra arte, está tão desabrigado quanto nós, o povo da cena. E a razão de tudo? Não, o culpado não é o coronavírus. Nem o governo insano que nos surpreende a cada dia com um novo absurdo. O problema é bem mais profundo. O teatro tem sido a nossa solidão.

Sim, o problema do teatro brasileiro é a solidão de si. Quantas vezes o teatro tem saído em campo para empunhar bandeiras, slogans, panfletos? Quantas vezes o teatro tem marchado ou berrado a favor de sicrano e beltrano, a favor de Chiquinha ou Manoel?

Pois justamente as Chiquinhas e os Manueis, agora, é que nos pesam. Não é que nós não devêssemos nos importar com eles, não tivéssemos que nos mexer. Não é isto. O fato é que fazíamos apenas isto. Portanto, íamos apenas como cpfs, estrelas, biografias incandescentes ou base eleitoral e não efetivamente como teatro.

A consequência? Nenhum movimento expressivo da sociedade civil está acontecendo em benefício do teatro nesta hora turva. Um ou outro político faz um gesto aqui ou lá, mas a condição do teatro é a mais amarga solidão. Ninguém se importa com a falência fragorosa do teatro.

Talvez por que tenhamos nos abandonado, nos relegado a um plano secundário. Nos agitávamos em cena e corríamos para aplaudir ou vaiar discursos, sem que levássemos a cena conosco. Simples assim. Quando demoliram o Teatro Glória, o que fizemos? Quando arruinaram o Teatro Villa Lobos, o que agitamos de verdade? Em 1949, para lutar pelo Teatro Fênix, a velha atriz Italia Fausta acampou lá dentro.

Não, não estou acusando o teatro de ser politicamente omisso ou ausente. Entendam: estou falando de algo mais profundo, do nosso compromisso com a nossa arte numa escala transcendental e primeira. Se nós nos importássemos de verdade conosco, será que a sociedade deixaria desativar o Teatro Maison de France?

Se o nosso sangue corresse em nossas veias por causa da nossa arte irradiaríamos a hemorragia para a sociedade. O nosso vínculo teria eco e todas estas casas que foram abaixo – Teatro Mesbla, Teatro São José, Teatro da Galeria… – estariam aí, de quarentena, até que fosse possível abrir as cortinas.

O mote é este – por aqui, não encenamos Édipo, somos Édipo. Matamos o pai-teatro a todo o momento, com muito prazer, como se não quiséssemos a sobrevivência da nossa arte. Quer dizer, nós nos matamos. E abrimos a boca bem larga para reclamar, na suposição, errada, de que a culpa é do governo, da sociedade, do público e até, quem sabe, das velhinhas da van. Ou das estrelas do céu, que deixam a noite escura com a sua pouca luz.

A nossa falência conosco está evidente num fato simples. Se nós tivéssemos uma relação menos doentia com a nossa arte, seria mais fácil – ou mais exequível – formular propostas para vencer a catástrofe que envolve o palco agora. Um exemplo histórico vale para ativar o raciocínio.

Quando uma jovem equipe promissora, no final dos anos 1950, desejou formular um grupo teatral dedicado a um conceito particular de teatro moderno, bastante novo no Rio de Janeiro, os seus integrantes se dirigiram ao público potencial, que os via no teleteatro, e propuseram a compra de assinaturas para a programação futura. Assim nasceu o Teatro dos Sete, em 1959, de Gianni Ratto, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sérgio Britto, Ítalos Rossi.

Hoje, qual o coletivo de teatro que conseguiria vender assinaturas para uma série de espetáculos futuros, estratagema para contornar a crise? Qual é o público de teatro no Brasil hoje? Sabemos que o público de teatro hoje, em termos relativos, é menor do que o público de teatro dos anos 1950.

Quer dizer, o percentual da população, hoje, que se interessa por teatro e não vive sem a arte é menor do que o percentual que, nos anos 1950, apresentava o mesmo perfil. A pergunta incômoda é: como o teatro abandonou estas pessoas que amavam o teatro? O que fez com que elas perdessem o hábito de ir ao teatro e de amar a arte?

No Rio de Janeiro atual, nenhuma casa de espetáculos tem exatamente um perfil de arte nítido – talvez o Teatro Poeira esteja caminhando para ter uma definição. Mas os perfis ainda são hesitantes. Isto significa dizer que os teatros não sabem com quem falam, não podem chamar a tribo e dizer: vamos…?

Não vale, claro, considerar os teatros mantidos por políticas públicas ou instituições. Ainda que o Sesc ou o CCBB possam ter público certo, definido, ou linha de programação dotada de alguma identidade, estas casas não dependem da bilheteria para sobreviver e os preços praticados criam um recorte específico.

Portanto, nunca é demais repetir. A crise do teatro brasileiro vem desde o século XIX e deveria merecer muita atenção da categoria. Deveriam ser organizados seminários, debates, encontros para pensar estes impasses. Ao longo do século XIX, quando o teatro (e a ópera e os bailados) era a arte prestigiada pela sociedade para a sociabilidade e a vida cortesã, inúmeras foram as crises e as ruínas teatrais vividas pelo palco.

O Teatro João Caetano, construção privada contemplada com algum apoio oficial para ser erguida e para se manter, se tornou teatro público à revelia do desejo do Estado – sucessivas falências de empresários empurraram o prédio para o patrimônio do Banco do Brasil (dos vários BBs que tivemos). Acabou se tornando um bem do governo à força.

Aliás, João Caetano fez de tudo para que as suas filhas não seguissem a profissão, a seu ver desvalida, da atuação. E morreu desiludido. Machado de Assis, nosso maior escritor, enveredou pelo teatro, mas não perseverou. Artur Azevedo, o maior dramaturgo da história do país, se tornou um ilustre desconhecido nacional. E vamos lá – o que o teatro brasileiro tem feito por Artur Azevedo?

Este é um ponto crucial – como tornar socialmente relevante uma arte que nós, que somos do teatro, não cultivamos com louros, honras e celebrações? Por que insistimos em achar que existe um teatro velho, ultrapassado, desinteressante, e cultivamos a permanente visão da cena como um vanguardismo desvairado?

Somos escravos do modismo. No século XIX, o teatro viveu também uma cisão interna intensa – segundo a tradição  francesa, tragédia e drama, gêneros sérios, mereciam todo o prestígio e  destaque social, enquanto a comédia e correlatos deviam ser considerados gêneros menores. O fato é que, em que pese a grandeza dos combatentes, nunca se conseguiu instituir o grande teatro trágico como um prazer brasileiro. O sucesso, ainda que mambembe, cortejava o mundo do riso, da dança e das pernas para o ar.

Quer dizer, a precariedade era a nota maior da cena. Nesta arena, o socorro do governo se fazia presente, em particular com extração de loterias. Mas, no entanto, sempre se achava inadequado que houvesse dinheiro ou apoio público para os gêneros alegres, que seriam “comerciais”, fáceis, rentáveis, restrição formulada pela própria classe teatral.

Um estranho comércio, diga-se, em que joias preciosas da cena, como a grande atriz Ismênia dos Santos (1840-1918), morriam na mais completa miséria. A lista de misérias, aliás, impulsionou Leopoldo Fróes (1882-1932) a criar o Retiro dos Artistas. Leopoldo Fróes escolheu a data da morte de João Caetano para ser o dia do artista no Brasil, a data símbolo de fundação do Retiro dos Artistas.

Fróes lutou para fazer o retiro depois de receber a visita, no seu camarim, de um grande ator do passado, velho, acabado, mendicante e morto de fome. Um grande artista decaído sem dignidade qualquer. Tanto tempo depois, o retiro vive perigosamente em risco, pede socorro sem parar, ameaçado de fechar, pois não surgiram formas estáveis de manutenção.

Agora, uma crise para chamar de nossa. O que fazer hoje diante da calamidade que cerca o palco? Nas atuais condições, não há a possibilidade de fazer caixa através de espetáculos de benemerência ou de festivais (forma antiga de espetáculos com renda destinada para um artista ou uma causa).

O atual governo, absolutamente desconectado com o universo da arte, da cultura e da educação, dificilmente poderá ser convencido a extrair loterias ou a destinar percentuais das loterias para o palco. Portanto, a classe está entregue à sua solidão em grande estilo.

Além das ações de doação, dentro da própria classe, para socorro imediato aos mais fragilizados, é fundamental e urgente pensar formas exequíveis de captação de recursos para o teatro. Os grandes patrocinadores e apoiadores do teatro podem ser convidados para a concepção de caminhos de proteção à arte. Podem ser pensados dispositivos de bolsas e financiamentos, dotações para processos longos de elaboração de trabalhos, com equipes grandes.

Por exemplo – consideremos amantes das artes de grande  porte, tais como Petrobras, Eletrobras, Vale, Itau, Banco do Brasil, Santander, XP ou Bradesco. Ipiranga, Rede d’Or, Unimed, Golden Cross, Sul América… São muitos os potenciais apoiadores. Eles podem conceber editais de grande alcance, longo curso.

Uma estrutura possível seria a organização de espetáculos gigantes, com textos de fôlego, grande elenco. A primeira etapa seria realizada através de home work. Tanto poderia ser escrito um texto original, como poderiam ser contemplados clássicos nacionais. A apresentação, a ser definida em função do calendário da saúde nacional, envolveria uma equipe numerosa, técnica e artística. Ou poderia acontecer – em último caso – via internet ou TV.

De toda forma, a pandemia parece indicar algo muito sério: não existe mais a possibilidade de manter a existência do teatro brasileiro em ritmo de narcisismo solitário miserável. A ordem do dia é: Édipo, adeus. É absolutamente fundamental que o teatro se perceba e se assuma como atividade econômica, com os seus meios de gerência e de sobrevivência distantes do improviso juvenil, fora da antiga ideologia brasileira do favor.

O teatro não tem que viver com o pires na mão, de joelhos diante de autoridades boçais. A situação, é verdade, se aplica a toda a arte brasileira – o próprio carnaval não pode prosseguir como prática esmolante. Neste século XXI, em que se amplia a produção automatizada e se expande o mercado de produção de bens simbólicos, não existe justificativa para que se mantenha uma forma de produção filiada ao compadrio e ao beija-mão pré-capitalista.

Assim, a agenda parece clara. De um lado, ações políticas,  associativas, para a negociação com as instâncias governamentais, por mais inflexíveis que elas sejam. Com o apoio de políticos e de autoridades vinculadas ao teatro,  se procuraria agir para a liberação de recursos públicos tais como verbas e dotações previstas em lei, isenções fiscais.

Do outro lado, a busca do apoio dos tradicionais patrocinadores e do público seria um caminho dialógico para planejar a retomada das atividades criativas. O teatro, para renascer, conceberia projetos de grande encontro social, projetos capazes de revelar a potência do palco para pensar esta crise. Temos grandes diretores, hábeis para levantar um monumento teatral desta ordem.

Nestes casos, a ação estaria longe da reclamação e do enfrentamento pequeno, se inclinaria para dimensionar a grande arte de estar junto, independentemente da miséria  política dos governos ou das elites nacionais. No fundo, a grande questão não é apenas sair da crise, mas, antes, sair do gueto, sair desta vala estreita em que o teatro aqui vegeta, reclamão, acovardado, incapaz de ser uma estrada solar de pulsação da alma nacional.

Serviço:

Imagem: caricatura de José de Alencar na revista O Mosquito, 1874, o autor alimentado por uma sopa de moedas pelo empresário do teatro.

Leia alguns livros que mostram bem como o teatro brasileiro apresenta um panorama estranho – imensos talentos, grandes artistas, reduzidos a pivôs de um tabuleiro cênico canhestro:

Ferreira, Procópio. O Ator Vasques. Rio de janeiro, MEC, 1979.

Magalhães Jr., Raimundo. As mil e uma vidas de Leopoldo Froes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.

Marzano, Andreia. Cidade em Cena. O Ator Vasques, o Teatro e o Rio de Janeiro (1833-1892). Rio de Janeiro, 2009.

Prado, Décio de Almeida. João Caetano – O Ator, O Empresário, O Repertório. São Paulo, Perspectiva, 1972.