A esperança de ser na caixinha do palco…
Às vezes o teatro é uma lavanderia. Você entra com a sua alma encardida, sujinha mesmo, à beira de virar um pano de chão velho. E sai de lá radiante, como se tivesse passado por uma mágica máquina de lavar, pura renovação. Um perigo ameaçador fica à espreita, é preciso ficar alerta: as almas mais animadas, faceiras, podem até dançar na calçada.
Descartadas as diferenças individuais, o ponto em comum, democrático, está bem aí: mostra o quanto o teatro pode fazer por você, para que você siga o seu rumo vendendo alegria ou, no mínimo, acreditando em si e na vida. Garanto – você não vai encontrar esta grandeza em nenhum outro lugar, nem procure.
Claro, de acordo, nem sempre se tem, diante da cena, a possibilidade de renovação humana plena, triunfal. Existem tentativas fracassadas, assim como as máquinas de lavar roupa enguiçam. No entanto, quando as ofertas esfuziantes aparecem, elas valem ouro, não o ouro-vil-metal, mas aquele outro, o ouro invisível, dos alquimistas enfeitiçadores, bem mais precioso, pois é impalpável…
Se você deseja experimentar este tipo de teatro, não se furte, não impeça a sua beleza de ser – corra lá no Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim e se entregue descaradamente às delícias de A esperança na caixa de chicletes Ping Pong. O genial espetáculo de Clarice Niskier está de volta ao cartaz, horário alternativo do Festival Arte por Toda Parte. Totalmente imperdível.
A proposta surpreende por sua universalidade – tanto ela arrebata o espectador comum, presença eventual no teatro, como ela deslumbra todo e qualquer amante fiel das artes da cena, do simples devoto ao estudioso do palco. Há na peça um fervilhar de sensações conduzido de forma contagiante. A dona do segredo se chama Clarice Niskier e ela não está em cena apenas como atriz, ela concebeu a obra e escreveu o texto.
Assim, do título às artimanhas musicais ao redor da obra de Zeca Baleiro, esta o grande fio condutor do espetáculo, a atriz acontece, é presença radiante. Em consequência, Clarice Niskier assina um feito histórico: ela retoma a grande tradição do teatro brasileiro, talvez a maior vocação do teatro brasileiro, ela reata com a lição cênica de Vasques (1839-1892) e Dercy Gonçalves (1907-2008).
Os dois atores construíram as suas carreiras exatamente neste formato, escreviam os espetáculos a partir de uma visão da arte capaz de misturar auto ficção com a inquietude da arte do momento, a pulsação das ruas e da sociedade. Clarice Niskier renova o caminho e promove uma revolução. Se, nos antigos, as sintonias eruditas geravam paródias (Vasques) ou absoluto desprezo (Dercy), agora elas figuram como transubstanciação e se apagam para apontar um ser novo.
O texto se estrutura a partir do culto ao sentimento de esperança – palavra que povoa a cena com ampla significação. Uma pergunta do próprio filho a respeito do sentido de se insistir em continuar vivendo no Brasil, diante de tantos problemas estruturais, conjunturais e eventuais, se impõe como nó dramático central.
Para quem nasceu numa família de imigrantes que escolheu o país e se dedicou ao cultivo da grandeza da nova terra, a pergunta tem alto poder de corrosão. A poeta da cena enrodilhou achados eloquentes, bem teatralizados, para responder convicta: sim, eu fico. Serena, ainda que imersa em emoção, a atriz assume o comando da alma do público, para perguntar a respeito das nossas identidades. Um pouco como o Brasil, ela provoca riso e choro, para chegar afinal a um efeito restaurador.
A ciranda sentimental se amplia a partir de uma lembrança poética bem-humorada – Clarice Niskier na infância tratou de criar esperança, o pequenino animal verde, numa caixa de chicletes Ping-Pong. Ao explorar a extensão sentimental do episódio vivido, logo ela se revela uma atriz rendeira, exímia tecelã de emoções.
A habilidade flui ao explorar as letras e as músicas de Zeca Baleiro sob a ótica da celebração da cultura popular, ao lado de afirmações de grandes pensadores da realidade brasileira e da sociedade humana. Ideias de Sérgio Buarque de Holanda, Eduardo Galeano e Yuval Harari aparecem em cena sob a mesma dúvida – é possível explicar o Brasil, entender o Brasil?
Portanto, o tom inebriante do espetáculo nasce da desenvoltura de Clarice Niskier para mesclar universos díspares vertiginosamente. Ela combina as inquietações profundas das ruas hoje, diante do Brasil e do mundo, a pulsação criativa infinita da cultura popular, a intensidade contemporânea da cena teatral, os saberes acadêmicos mais contundentes para pensar o país e a vida e, até mesmo, o horizonte culto de sua família. Mas não se trata de espetáculo hermético, divagação de intelectual, a comunicabilidade domina todo o percurso.
Os modelos históricos de irreverência teatral – Francisco Vasques e Dercy Gonçalves, foram atores que romperam os limites existentes no seu tempo para a criação do ator – transparecem não só na opção por autoralidade, quer dizer, criação total. Eles marcam ainda a inclinação para um espírito de transgressão geral, a coragem para enfrentar o senso comum, o conformismo, a prisão das ideias preconcebidas. Os exemplos históricos brotam também no descaramento assumido para expor a vida no seu desfile de miudezas cotidianas.
Contudo, a ousadia teatral vai além, se atualiza, mergulha na exploração da linguagem cênica e se materializa na intensidade física. Está no palco a chamada “presença total” ou “radical”, na dança espontânea, nos meneios sensuais de corpo, nos gestos plenos e fortes, nos giros e marcações circulares de belo efeito estético, enfim, formas de movimento vibrantes em sintonia profunda com a sala. Para completar a amplidão do acontecimento teatral, a atriz rege a plateia objetivamente, bota o público para cantar. Em resumo, nada acontece fechado no palco.
A convivência entre a carne brejeira dançante e a verve pensante aponta para um teatro novo, uma nova forma de fazer, muito próxima do despojamento popular típico da rua carioca. Quer dizer, a lição histórica do ator-menestrel-aedo-senhor-da-cena rompeu a um só tempo a cortina do passado e os quadros acadêmicos, chegou ao futuro. Brasil brasileiro cênico atômico, digamos. A qualidade contemporânea da montagem, um dado contundente, fica patente na equipe de criação, uma maratona artística de grandes talentos que se inicia na parceria com Zeca Baleiro, diretor musical.
Apesar da própria atriz dirigir o espetáculo, a supervisão de Amir Haddad garantiu o olhar externo do diretor, a limpeza, viabilizou a densidade do acabamento da cena. O cenário de José Dias, um dado novo na ficha técnica da remontagem, determinou a construção de um espaço despojado, funcional, mas eloquente. A luz de Aurélio de Simoni desenha climas e sublinha as ações com extrema acuidade, colabora diretamente com o movimento de afastamento/aproximação da atriz com a plateia.
O figurino, sob dupla assinatura, combina o reconhecimento do simples cotidiano teatral, numa roupa de base, com a imagem popular feérica de Zeca Baleiro e, ainda, a ideia de festa, celebração. Para tanto, ao lado do nome de Kika Lopes, surge o nome de Charlô, responsável pela criação, confecção e ressignificação do manto vermelho de Zeca Baleiro.
E tem mais. O Festival Arte por Toda Parte, um evento dedicado a dar oportunidade e projeção aos talentos musicais que nascem nas ruas, nesta edição decidiu oferecer ao público carioca a oportunidade excepcional de ver a atriz-autoral em repertório. Também na Laura Alvim, Clarice Niskier, comemorando quarenta anos de carreira, estará em cena com a impactante A Alma Imoral. A montagem se tornou uma obra viva na cena teatral brasileira, persiste em cartaz e em diálogo com a sociedade. Uma peça para ver e rever, nestes tempos dominados pela necessidade urgente de se perguntar a respeito do sentido da vida.
Portanto, o programa oferecido é duplo. Dá para remoçar a alma sofrida com um banho de esperança, aquela esperança inebriante que nasce sempre quando constatamos a grandeza do Brasil, a exuberância de sua cultura e a nossa potência para pensar a vida. E dará ainda para reformar as energias fundamentais do corpo, quando experimentamos passear pelos valores éticos mais contundentes que podem nortear a existência.
Em resumo, corra para ver. Não se iluda: Clarice Niskier se torna a partir daqui um nome de primeira linha na história teatral do país. De quebra, ela lhe oferece uma chance imperdível: a chance de ir ao teatro lavar a alma.
A Esperança na Caixa de Chicletes Ping Pong
SERVIÇO
DATA: 05 a 27 de outubro de 2022, às quartas e quintas, às 20h
LOCAL: Teatro Casa de Cultura Laura Alvim – Avenida Vieira Souto, 176, Ipanema, RJ
DURAÇÃO: 70 min
GÊNERO: comédia pop lírica
CLASS. INDICATIVA: livre
INGRESSOS: R$60 e R$30 (meia);
CAPACIDADE: 200 espectadores
Todas as sessões vão contar com intérprete de libras e audiodescrição
Site para vendas de ingressos: funarj.eleventickets.com
SINOPSE
Inspirada pelas músicas de Zeca Baleiro, Clarice Niskier revela sentimentos e pensamentos sobre o Brasil, a vida, o sucesso e o amor, expondo a ‘viagem’ que faz dentro de si enquanto a trilha se desenrola. Memórias, sensações, desejos, reflexões e opiniões se encadeiam de forma lúdica, desenhando um painel social do Brasil e, ao mesmo tempo, do mundo individual da atriz.
AS MÚSICAS DO ESPETACULO:
1. Samba do Approach – letra&música
2. Babylon – letra&música; e versos
3. Homem Só – versos
4. Balada do Oitavo Andar – versos
5. Lenha – versos
6. Amargo – versos
7. Mamãe no Face – letra&música
8. Era Domingo – letra&música
9. Bienal – versos
10. Minha Tribo Sou Eu – letra completa
11. Pastiche – letra completa
12. VôImbolá – versos
13. Desesperança – letra&música (parceria com Paulo Monarco /poema Sousândrade).
14. Drumembeis – versos
15. Pedra de Responsa – versos
16. Parque de Juraci – letra&música
17. Muzak – letra&musica
18. Trecho 1 “Novela Selfie dos Cinquenta Anos – ZB”
19. Meu Nome É Nelson Rodrigues – letra completa
20. Trecho 2 “Novela Selfie dos Cinquenta Anos – ZB”
21. Trova – letra&música
22. Outra Canção do Exílio – versos
23. Heavy Metal do Senhor – versos
24. Cigarro – versos
25. Por Onde Andará Stephen Fry? – letra&música
26. Vocação – voz de ZB (parceria Padre Zezinho)
27. Trecho 3 “Novela Selfie dos Cinquenta Anos – ZB”
28. Salão de Beleza – versos
29. Trecho 4 “Novela Selfie dos Cinquenta Anos – ZB”
30. De Mentira – versos
31. Vai de Madureira – letra&música ou versos
32. O Desejo – versos
33. Mamãe Oxum da Cachoeira – letra&música
34. Telegrama – versos
35. À Flor da Pele – letra&música
36. Minha Casa – letra completa
37. Nu – versos
38. Yes – versos
39. Brigitte Bardot – letra&música
40. Eu Despedi o Meu Patrão – versos
41. Bandeira – letra completa
42. Bachianas nº5 Villa Lobos versão ZB
43. Melodia Sentimental Villa Lobos versão ZB
44. Tudo Passará – de Nelson Ned – voz ZB
45. Chovia no Canavial- versos
FICHA TÉCNICA:
Texto, Interpretação, Direção Geral: Clarice Niskier
Supervisão de Direção: Amir Haddad
Direção Musical: Zeca Baleiro
Assistente de Direção: Maria Eugenia Tita (SP)
Criação, Confecção e Ressignificação do Manto Vermelho de Zeca Baleiro: Xarlô
Cenografia: José Dias
Iluminação: Aurélio de Simoni
Figurino: Kika Lopes
Preparação da Voz Falada: Rose Gonçalves (Rio)
Preparação da Voz Cantada: Carlos Nascimento (SP)
Preparação Corporal: Mary Kunha
Adereçamento dos Instrumentos: Xarlô
Confecção da Esperança: Fernando Santana
Pesquisa de Sonoridades Instrumentais: Simone Sou (SP), Bethi Albano (Rio)
Pesquisa Coreográfica (Dança Charme): Marcus Azevedo
Direção de Cena, Operação de Luz e Som: Carlos Henrique Pereira
Arte Gráfica: Carol Vasconcellos
Cenotécnico: André Boneco
Assistente de Figurino: Sassá Magalhães
Assistente de Iluminação: Guiga Ensá
Fotos: Zé Rendeiro
Assessoria Jurídica: Luciana Arruda (SP)
Apoio Cultural: Plano Consultoria
Direção de Produção: José Maria Braga
Realização: Niska Produções Culturais
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany