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        A máquina de fazer gente melhor

Vai, confesse, se declare. Você tem um cantinho de afeto para chamar de seu, um lugar onde se abriga, protegido, nos momentos em que se torna impossível suportar a aspereza do mundo.

Não, não estou falando de colo de mãe, dos braços ardentes de um amor fiel ou da casa da vovó. Estou falando de algo além, um lugar de fortaleza plena, um vazio de certezas e disputas, um plácido lago de repouso afetivo – e mental.

Todo ser humano tem um canto de afeto assim, um refúgio amigo e restaurador. O problema grave é que nem sempre este abrigo ideal é consciente. Para muita gente boa, ele merece ser refutado, mal amado. Pior, até.

Com muita frequência, o cantinho amigo é usado, acarinha a alma sofrida, mas a sua ação passa desapercebida… O hóspede ingrato, de novo senhor de si, ignora o esteio que o ajudou a se reerguer e simplesmente vai. Nem toma conhecimento da excelência do seu cantinho afetivo.

Na realidade, o grande cantinho de afeto universal, espécie de grande mãe anônima de todo o mundo, é a arte. Isto quer dizer algo muito objetivo: não existe vida sem arte.

A arte é necessidade básica de todos os seres humanos. Tanto nas comunidades mais carentes, como nas elites mais insensíveis, a arte se impõe como lugar em que a vida se reconcilia consigo mesma, se redimensiona como ato de viver.

Para chegar a tal efeito, não importa, de jeito nenhum, o grau de elaboração formal presente nas obras: cada sociedade produz a arte de que necessita e cada pessoa tece o seu cantinho afetivo ideal. Uma flor de papel jornal presa numa parede de madeira carcomida pelo cupim permite que o olhar se encante e exercite a abstração da materialidade ao redor.

Uma tela preciosa – em todos os sentidos – assinada por um Boudin ou um Guignard permitirá ao contemplador a fuga de si e do seu tempo imediato. Tal se dá ainda que este olhar seja comandado por um cérebro que só consegue mesmo contar a cifra empregada para comprar a obra. Numa hora qualquer, o olho resvala, abraça as cores da tela e vai.

Isto quer dizer também algo muito objetivo: não deve existir barreira para a difusão da arte. O adolescente pobre descalço deve ter tanto acesso ao tesouro de arte da humanidade como a guria fascinada por seus sapatos de sola vermelha.

Aliás, sonhar com os efeitos sociais da arte não é difícil.  Para quem acredita no poder da arte e busca sempre se renovar através de uma autoexposição intensa às criações da cultura, é fácil imaginar que, num mundo com mais arte, estes opostos sociais radicais absurdos citados acima simplesmente não existiriam. A rigor, eles só existem nestas formas mais rudes, abissais, nas sociedades em que a cultura é volátil ou localizada.

Sim, estou simplificando. O assunto tem densidade extrema, ocupa pensadores, filósofos e artistas há milênios. Sim, sonhar não custa nada, diria o coro da Mocidade Independente de Padre Miguel. Então, o que importa aqui é um outro nicho, derivado do primeiro: constatar o extremo benefício oferecido a todos pela arte nestes tempos de pandemia.

Precisamos de um verbo novo – artear ou artar. Tipo arteemos. Ou artemos. Estamos sob a maior crise sanitária da história da humanidade, pois nenhuma outra aconteceu cercada por uma sociedade de invenção, da tecnologia e do conforto, comparável à nossa. E estamos reféns do vírus. Todos sabemos que o pesadelo, apesar da excelência das vacinas, está longe de passar.

Então, o que temos? O que fazemos? A resposta é fácil. Rápida. Temos arte. Muita arte. Arteemos todos.

Desesperou? Esqueça de si, ouça uma música, olhe um quadro, leia um livro, recite um poema, veja um filme, acompanhe uma peça online. Dance pela casa. Cante, não só no chuveiro, mas por toda a parte, solte a voz, entregue o corpo. Há um canto de afeto todo seu, ao seu dispor.

Surgem agora muitas obras inspiradas pela pandemia – elas nos perguntam sobre o que foi feito de nós, o que fazemos de nós, quem verdadeiramente somos. Precisamos das nossas respostas, para reorganizar os dias, olhar a vida  com olhos de sorriso e levar adiante nossos projetos, nossos sonhos. Quais são os nossos limites, quais são os nossos poderes, como organizar nossos quereres?

Um estudo curioso sobre a nossa capacidade para viver nos limites estreia esta semana, teatro presencial, no Centro Cultural Banco do Brasil. Todos os protocolos indicados para a preservação da saúde estão em pauta na casa.

No palco, a sempre inquieta – e intensa – Clarice Niskier traz um texto de sua autoria, Coração de Campanha. Ao lado de Isio Ghelman, ator de meios expressivos ultrarequintados, sob a supervisão de Amir Haddad, a atriz nos convida a contemplar uma cena exemplar da crise doméstica sob o coronavírus.

Um casamento frágil se desfaz no palco, mas se desfaz como nova humanidade, não como aquelas velhas cenas dilaceradas do passado, de confronto de ego e lavação de roupa suja. Em lugar do ódio, nasce da dupla crise um sentido novo de amizade e de amor. Quer dizer, uma visão nova da existência.

O mote para escrever o texto nasceu um pouco da observação dos fatos ao redor – com a pandemia, a atriz constatou, surpresa, o aumento da violência doméstica. Cogitou, então, trazer a visão de um contraponto, falar de pessoas que conquistaram a reaproximação humana do outro, pessoas nas quais a crise e a dor provocaram a expansão da solidariedade.

Sob o foco, surge um casal em dissolução do amor, à beira do fim do casamento, surpreendido pela quarentena. Obrigados a conviver, eles se reinventam e buscam saídas para a espiral de problemas, se reconhecem como seres humanos, amigos, acima de qualquer outra sistuação, casados ou separados.

De certa forma, a peça lança um desafio estratégico para a vida presente – o convite para cultivar a sensibilidade acima de tudo, a favor da inteligência humana. A palavra é bem esta – inteligência. A arte é a forma inteligente de trato dos sentimentos e emoções, este é um belo debate desde sempre.

E este mesmo tom surge com uma experiência cênico teatral curiosa, que entra também em cartaz esta semana, banhada pelos ares mais inquietos do sul. A proposta apresenta vários encantos.

O primeiro deles é a chance de conhecer uma grande atriz gaúcha,  Liane Venturella, personalidade intensa cujo trabalho precisa alcançar circulação nacional. Atriz profissional muito ativa, ela apenas estreara dois trabalhos quando a pandemia chegou e parou tudo.

Para continuar em atividade, concebeu a montagem de Derrota, texto de Dimítris Dimitriádis, autor grego contemporâneo ainda pouco conhecido por aqui, este o segundo encanto do trabalho. E a lista dos pontos de atração oferecidos não para por aí não.

Diante de seu primeiro monólogo, a opção foi a de desenvolver uma experiência de arte, criar algo novo, entre o teatro, o filme, o vídeo. Sob a direção de Camila Bauer, a atriz enfrenta o espectador sob um tom incandescente de valorização da vida, um pouco como se cada fala pudesse ser a última.

A cena é despojada, a tensão e a atenção estão concentradas na atriz e no texto, não existem efeitos especiais. A proximidade induz a um pensamento novo a respeito do humano, proposto em plano direto, sem filtros.

Além disso, está na pauta também a chance de debater o formato da produção e do contorno do mercado: a peça foi levantada  sem financiamentos – nem público, nem privado.

O tema do ser solitário, plena solidão existencial, portanto, se espalha por todos os cantos da proposta. Talvez este seja um assunto tenso para a realidade brasileira. E urgente: quem sabe está na hora de lidarmos com a nossa forma bandeirante de ser. Olharmos de frente nossa aversão a sermos coletivo, congregação.

Na cena que vem do sul, por sinal o nosso principal cenário histórico de guerras e batalhas, aparece uma figura humana que experimenta o limite do  poder da fala, explora a possibilidade de inscrever o eu no mundo e se vê apenas diante de sua enorme solidão.

Vale conferir – ao vivo ou on line, as duas propostas contém o que há de melhor no teatro: exatamente a possibilidade de contar com um cantinho afetivo capaz a um só tempo de abrigar e de fazer perguntas contundentes sobre as escolhas de vida a fazer.

Este é o teatro, tome-o para você. Ele é uma forma inebriante de abrigo de si e do mundo. Ele é com certeza uma incubadora para renascer como gente: quer dizer, se tornar gente melhor.

CORAÇAO DE CAMPANHA

SERVIÇO:

Estreia: 17 de junho (5ªf), às 18h

Local: Teatro I do CCBB RJ 

Rua  Primeiro de Março, 66 – Centro / RJ    Tel 21 3838-2020

HORÁRIOS: 5ªf a sab às 18h; dom às 17h

INGRESSOS: R$30,00 (inteira), R$15,00 (meia e clientes e funcionários BB)

VENDAS SOMENTE POR INTERNET: https://www.eventim.com.br/event/teatro-coracao-de-campanha-centro-cultural-banco-do-brasil-rio-de-janeiro-13761091/

 CAPACIDADE: 70 lugares

 DURAÇÃO: 70 minutos

 GÊNERO: comédia contemporânea 

CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: 16 anos

CURTA TEMPORADA: até 08 de agosto

CCBB RJ

O Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro funciona de quarta à segunda, das 9h às 18h. O CCBB RJ está adaptado às novas medidas de segurança sanitária: entrada apenas com agendamento on line (eventim.com.br), controle da quantidade de pessoas no prédio, fluxo único de circulação, medição de temperatura, uso obrigatório de máscara, disponibilização de álcool gel e sinalizadores no piso para o distanciamento. 

FICHA TÉCNICA

Patrocínio: Banco do Brasil

Realização: Centro Cultural Banco do Brasil

Texto: Clarice Niskier

Supervisão de Direção: Amir Haddad

Direção : Clarice Niskier

Elenco: Clarice Niskier e Isio Ghelman

Iluminação: Aurelio de Simoni

Cenografia: José Dias

Trilha Sonora Original: José Maria Braga

Figurino: Kika Lopes

Preparadora Vocal: Rose Gonçalves

Preparadora Corporal: Mary Kunha

Fotos: Dalton Valerio fotos

Operador de Luz e Som: Carlos Henrique Pereira

Assistente de Produção: Gláucia Sundin

Programação Visual: StudioC

Direção de Produção: José Maria Braga

Realização: Niska Produções Culturais

Assessoria de Comunicação: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

DERROTA

SERVIÇO:

Datas: 18, 19, 25 e 26/06, sextas-feira e sábados, às 20h, e 22 e 29/06, terças-feiras, às 23h59min. 

Preço: R$ 11,75 (R$ 10,00 + R$ 1,75 em taxas)

Compra de ingresssos: www.entreatosdivulga.com.br/derrota 

Duração: 30 minutos

Classificação etária: livre

DERROTA | Teatro | Youtube | Porto Alegre | RS | Brasil

FICHA TÉCNICA 

Texto: Dimítris Dimitriádis

Direção: Camila Bauer

Elenco Liane Venturella

Direção Sonora: Álvaro RosaCosta

 Vídeo: Júlio Estevan e Nado Rossa

 Fotos: Claudio Etges

 Orientação de figurino: Fabiane Severo

Iluminação: Ricardo Vivian

 Assessoria de Imprensa: Léo Sant´Anna

 Social Media: Pedro Bertoldi

 Produção Artística: Letícia Vieira

 Produção: Primeira Fila Produções

 Realização: Projeto Gompa e Cia. Incomode-Te.

Assessor de Imprensa: Léo Sant´Anna