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Afinal, você tem um corpo para chamar de seu?

Milagre dos milagres, toquem trombetas, ergam bandeirolas e pulem pelas ruas – nós, no teatro, descobrimos que temos corpo. Não foi fácil, tal descoberta. Suspeito mesmo que o feito de Fernão de Magalhães foi muito mais fácil.

Com certeza você sabe quem foi o gajo acima, não? Ele descobriu o Estreito de Magalhães. O acidente geográfico famoso leva o nome dele e, apesar do corpo forte para tal empreitada, o herói não chegou com ele inteiro para contar a boa nova a el-rey. Numa guerra extemporânea, perdeu o tal do corpo, nunca recuperado, e partiu para o além.

Portanto, a vida dele foi dura, vamos combinar: a viagem por ele sonhada se revelou um programa para malhar o corpo no pior sentido do verbo. Mas há recompensa, ele ficou tão famoso que veio assombrar estas singelas linhas. Pois ouso dizer, então, algo bem forte – no teatro, a dura batalha do corpo foi bem mais árdua. E a culpa é de quem? Daquela moça áurea tão louvada, a bela palavra. Por causa dela, o corpo esteve durante séculos reduzido a menos do que coadjuvante. Era, digamos, letra morta, aquela voz que cala, não se pronuncia.

No século XX, contudo, com o caminhar acelerado das décadas e o desaparecimento espantoso das roupas, o corpo começou a ser mais familiar aos humanos, ganhou vida social, ficou faceiro e pode, aos poucos, se mostrar. Ficou saidinho mesmo. Deixou de ser o escondido, a pornografia, a vergonha alheia e ganhou um lugar ao sol.

Ah, sim, com certeza a invenção do banho de mar contribuiu muito para que as carnes, outrora escondidas, fossem, assanhadas ou tímidas, por aí se mostrando, se exibindo, se oferecendo em público. Em cena, elas deixaram de ser a arma das vedetes e das cenas burlescas e se tornaram pedaços de vida, formas buliçosas em movimento.

Corpos subitamente livres, acabaram até, mal comparando, dependurados como pedaços de carne, aparentados com aqueles quartos de boi amados por Antoine (1858-1943), no teatro naturalista. Certos diretores de teatro andaram dependurando atores – às vezes nus ou quase – de cabeça para baixo, como num açougue existencial!

Pois o realismo engajado na luta a favor da libertação da pessoa enveredou por um caminho comparável ao naturalista, com o nudismo, o corpo exposto em si, virando profissão de fé. E que caminho longo e agitado o corpo percorreu na cena! Do ator-mourão de cerca, quase uma boca tirânica, ao ator-minhoca-rebolativa, quase um corpo sem cérebro, um vendaval de invenções rolou de palco em palco ao redor dos espectadores, por vezes bastante surpresos.

Lembro, com humor e alguma maldade, da cena de nudez de Hair, montagem nacional que assisti por volta dos 17 ou 18 anos. O meu grupo, uma juventude suburbana estudiosa e intelectualizada, viu a cena sem perplexidade – aliás, parecia uma cena de nudez envergonhada, muito rápida, zás-trás, nem dava para ver nada.

Na conversa, na saída do teatro, sentenciamos que aquele era um problema muito americano, muito pertinente para eles, mas distante das nossas pobrezas sociais avassaladoras. O meu grupo, então, era um grupo só de meninas. Nas praias, os nossos biquínis já eram de cortininha e lacinho – quer dizer, ficávamos praticamente peladas al mare.

Mas, apesar das mini-saias muito minis e dos biquínis quase invisíveis, não vivíamos num país liberal, numa sociedade que aceitasse a nudez. Já tínhamos acompanhado o drama de uma amiga estrangeira que fizera top-less antes da moda e que quase acabou presa na delegacia. Estranho corpo nu, o corpo brasileiro.

Contudo, a década de 1970, mesmo assim, no teatro, foi libertadora. Lá se projetou com impacto a figura preciosa de Klauss Vianna (1928-1992), em particular após a montagem de O arquiteto e o imperador (1970), com o Teatro Ipanema, em que assinou a preparação corporal. Ao lado de Angel Vianna, sua esposa, ele formularia um arsenal de procedimentos para desmobilizar a rígida armadura de palavras que mantinha o corpo do ator brasileiro num estado permanente de sentido,volver, verbal.

Muita gente hoje – e em alguns casos até são caciques de alta patente teatral – ainda tenta ignorar a desmobilização do corpo atoral. A sua artificação, digamos.  Pois é, o corpo se transformou em matéria de arte, passou a se projetar como matéria expressiva de grande impacto. O reconhecimento desta reviravolta histórica está na ordem do dia. Nos prêmios, a categoria corpo, muito embora complexa e repleta de nuanças, começa a se impor. Ela precisa existir, pois fala de uma prática de arte extensa.

Em conversa recente com um amigo teatral, homem de teatro e produtor, Claudio Rangel, rimos um bocado ao constatarmos que existem hoje mais profissionais em atividade na categoria corpo do que na categoria iluminação. Uma lista de nomes ocuparia um largo espaço no texto e poderia se tornar uma injustiça, pois alguém notável poderia ficar de fora, numa traição da memória. Por isto, não vou apresentar a lista.

Vale registrar que ela está lá na cena. O reconhecimento vem a galope – ou na velocidade das estrelas. Na edição deste ano do Festival de Curitiba, que já está no ar, a curadoria elegeu justamente o corpo como eixo temático do evento. E para lá seguirá o corpo do teatro nacional, claro, pois de 25 de março até 5 de abril Curitiba será a capital teatral do Brasil. Será a 29a edição, com números admiráveis, pois a agenda contará com mais de 400 atrações, em aproximadamente 70 espaços de Curitiba e da Região Metropolitana. Haja corpo!

O formato de sucesso do festival persiste, segue fiel ao seu contorno histórico – trata-se de uma vitrine do teatro brasileiro hoje, com alguns episódios estrangeiros aptos para demonstrar os debates atuais do palco internacional. Portanto, lá estarão  lado a lado estreias nacionais, sucessos estrangeiros, espetáculos premiados e mostras. As atividades oferecerão teatro, dança, circo, música, oficinas, shows e performances para os mais diferentes públicos, plateias de todas as idades.

Na lista de cartazes nacionais, na mostra oficial, constam nomes consagrados.  Estão em destaque Denise Fraga, Emicida, Luis Miranda, Mateus Solano, Laila Garin, Denise Stoklos, Otávio Mueller, Lúcio Mauro Filho, Marcos Breda, Cacá Carvalho, Grupo Corpo, Rodrigo Portella, Ranieri Gonzales, Grupo Armazém, Gabriel Villela, Renata Carvalho, Grupo Galpão.

E não é só isto, há uma infinidade de opções no Fringe e nas mostras paralelas. Com mais de 370 espetáculos, espalhados por 60 espaços de Curitiba e da Região Metropolitana, a programação do Fringe cobrirá os mais diferentes gêneros artísticos, ampliando ainda mais o leque de ofertas teatrais do Festival.

Os números são eloquentes, falam mais do que um ator antigo, daquele tipo aferrado ao verbo. São peças vindas de 17 estados brasileiros e de vários países, em destaque Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, Paraguai, Peru e Portugal. Em média, o evento oferecerá 1500 apresentações, destacando-se o fato de que mais de 390 serão gratuitas e 340 no sistema  “Pague Quanto Puder”.

Para ampliar ainda mais o mapa teatral construído, vale observar a dinâmica intensa que envolverá o teatro local, pois o Paraná é um estado em que o teatro ferve. Nesta conta, o Fringe vai agitar corpos e mentes de verdade, com 19 mostras especiais, muitas propostas por grupos artísticos de Curitiba.

Para planejar a viagem, vale conferir online a programação e comprar os ingressos – eles  estão à venda, em carne e osso,  nas bilheterias oficiais, no Park Shopping Barigüi e no Shopping Mueller, e em espírito, na lógica acelerada da intenção moderna, nas plataformas online, no site  www.festivaldecuritiba.com.br e no aplicativo oficial “Festival de Curitiba 2020”.

Portanto, mexa-se, leve o  seu corpo para esta celebração nacional preciosa, pois não há nenhum festival de teatro comparável no país. Lembre-se bem: a oportunidade é única, não há festival como este. O esforço será recompensado, o seu corpo e o seu espírito irão usufruir momentos de extrema beleza.

Lá, na encantadora cidade do sul, você poderá avaliar também a dimensão das conquistas alcançadas pelo corpo em cena. Conquistas ousadas, revolucionárias, surpreendentes e, claro, belas, elas superam a lista de feitos de Fernão de Magalhães. Como? Ah, elas vão permitir que você, mesmo não sendo personagem histórico, perceba como era estreito o mundo em que só as palavras serviam, como caminho, para os atores nos mostrarem novos mundos para ver.

FICHA TECNICA:

O que: 29.º Festival de Curitiba

Quando: De 24/03 a 05/04 de 2020.

Apresentadores, patrocinadores e apoiadores

Ebanx, Vivo, Uninter, Renault do Brasil, Electrolux, Banco RCI Brasil, Junto Seguros, Cielo, Copel – Pura Energia, Sanepar, Governo do Estado e GRASP.

O Programa Guritiba é apresentado por New Holland, com patrocínio de Novozymes e Fibracem.

O MishMash é apresentado pela Unimed Curitiba e Thales Group, com o apoio da Ritmo Logística.

Risorama é apresentado pela Potencial Petróleo, com o patrocínio de Previsul Seguradora,  tem como  cerveja oficial a Cacildis e o apoio de FH Consultoria e Grupo Barigui.

As bilheterias do Festival de Curitiba são uma parceria com o ParkShoppingBarigüi e o Shopping Mueller.


Valores:

Mostra 2020 – De R$ 0 a R$ 80,00 (entrada inteira)*

Fringe – De R$ 0 a R$ 60,00 (entrada inteira) + taxa administrativa

Risorama – R$ 70,00 (entrada inteira) + taxa administrativa

MishMash – R$ 40,00 (entrada inteira) + taxa administrativa

Guritiba – De R$ 0 a R$ 40,00 (entrada inteira) + taxa administrativa
*Os espetáculos dos espaços José Maria Santos e Mini Guaíra, são acrescidos de taxa de R$ 1.44.

Serviço:

Ingressos: www.festivaldecuritiba.com.br, pelo aplicativo “Festival de Curitiba 2020”, e nas bilheterias físicas do ParkShoppingBarigui (Piso térreo próximo à praça de eventos), de segunda a sexta-feira, das 11h às 23h; sábado das 10h às 22h e domingos das 14h às 20h; e no Shopping Mueller (piso L3), de segunda-feira a sábado, das 10h às 22h; domingos e feriados, das 14h às 20h.

Verifique a classificação indicativa e orientações de cada espetáculo.

Hashtags oficiais – #festivaldecuritiba #festcuritiba #ofestivalparatodos #omeufestival