A poesia do pensamento teatral
A pergunta está entre nós e, ao que tudo indica, jamais irá nos deixar: o que é um autor de teatro? Para quê serve esta figura fugidia? No caso brasileiro, sem dúvida devemos defini-lo como um fantasma triste, pois não é um fantasma convencional, daqueles que fazem sucesso, ao apavorar multidões.
Não, nosso autor é pobre espantalho de roça sem milho, não causa frio ou calor – é um fantasma mais no sentido de ser ignorado, do que na acepção eletrizante de assombração. Para a sociedade – ou para o poder – é como se o autor não servisse para nada. Claro: tudo o que se quer é que o Brasil ande para trás. Pois a poesia do teatro existe para fazer andar o mundo, para a frente.
A coisa soa grave e talvez vá além das artimanhas do poder. Faça um teste rápido de consciência – qual o grande autor teatral brasileiro do momento, aquele cujas peças você não perde de jeito nenhum, pois tocam no fundo do seu fígado, para rir ou para chorar? Encontrou um nome? Parabéns. Então, amante de teatro verdadeiro, você merece uma medalha. Mas… quantos brasileiros hoje poderiam responder à pergunta vibrando com emoção um nome?
Pois foi justamente por causa deste problema que decidi ver teatro grego no fim de semana. “Na dúvida, aos gregos!”, pode ser uma réplica teatral muito boa. E há quanto tempo, por Zeus, eu não vejo uma peça grega, daquelas de evocar coturnos, coros, dionysos e tudo o mais? A última que vi não conta – a excelência do trabalho de Andréa Beltrão na sua Antígona era inquestionável, mas a Grécia, no caso, estava bem evaporada, era mais pretexto para pensar o nosso tempo. Falo de peça grega mesmo.
Amigos me contaram da sensacional transmissão de Os Persas, de Ésquilo (525 a.C.-456 a.C.), encenação do Teatro Nacional da Grécia, no Teatro de Epidauro, no fim de semana. Transmissão mundial online grátis. Nada mais poderia pedir aos deuses uma alma apaixonada por teatro. No caso, teatro de alta voltagem, para troiano nenhum reclamar.
Mas nem só de amor se faz o cotidiano. E a paixão e o desejo foram soterrados pelo trabalho, pois eu precisava terminar um texto sobre teatro brasileiro. Para tentar diminuir a frustração, visitei a página do Teatro Nacional da Grécia e assinei a newsletter. Um mensageiro direto me uniria a Atenas e ao que mais.
Hoje, surpresa!, ela chegou – em grego. Bom, eu não leio grego. Grego, para mim, é grego mesmo. Foi divertido passear os olhos pela página, dançar com as letras e ficar sem entender nada. Por causa deste desafio, mergulhei na pergunta que aqui persigo – o que é um autor, e um autor de teatro, aquele que escreve no idioma de seu povo e cuja alma, de alguma forma, ele acaricia? O que é um autor que fala para você, que faz sua a poesia que ele escreve?
Pois penso que o autor é esta entidade, alguém devotado à escolha de acariciar a alma dos contemporâneos. Se a carícia é muito dedicada, penso que ele imortaliza os próximos, transforma os aldeões, seus vizinhos, em cidadãos universais, atemporais, referências para o mundo. Por isto, Ésquilo, lá de tão longe, nos comove. Fala conosco e nos diz coisas arrebatadoras, que precisamos ouvir.
A fala do encenador grego Dimitris Lignadis, diretor da montagem, para explicar a escolha do texto, bem pode inspirar um belo debate, acerca dos temas do poder, da vitória e da derrota. Para a Euronews, ele declarou:
“…todos os clássicos são atemporais. Ficam como que radioativos ao longo do tempo. ‘Os Persas’ foi a peça escolhida por ocasião das celebrações dos 25 séculos da histórica Batalha de Salamina. O tema remete à vitória de uma pequena nação, uma força menor, como era então a Grécia, contra a superpotência que era a Pérsia. E fala da arrogância que esta vitória pode acarretar para o futuro. É um enorme lamento retratado numa tragédia antiga.”
O fato merece reflexão. De saída, a doação grega surpreende, uma oferta mais do que generosa para o mundo. Além do texto, considerado a peça teatral completa mais antiga de que se tem notícia, há o encanto da encenação no Teatro Epidauro, do século IV a.C., um dos grandes santuários teatrais do mundo, talvez o mais importante de todos.
Às voltas com uma crise econômica de proporções monumentais, a Grécia persiste atenta ao seu papel cultural no mundo. Mas, sem a hybris dos persas ou mesmo aquela antiga dos gregos vencedores, ao divulgar a generosa transmissão gratuita, os promotores não se furtaram a esclarecer que doações para o Teatro Nacional serão muito bem vindas.
Um segundo tema importa – a crise econômica ou a falta de recursos não são obstáculos para a produção da cultura. O que impede a vida cultural é a ignorância, a estupidez e um tipo de hybris específico, aliás coisa muito nossa, parte da substância que compõe a alma do político brasileiro – uma soberba preocupada em preservar o seu poder através da ampla disseminação da ignorância.
Ésquilo, o primeiro dos grandes trágicos gregos, como os demais dramaturgos de sua época, não era um escritor profissional, digamos – não escrevia para viver e tampouco o teatro se organizava como acontece hoje, como fato de mercado, ainda que pudessem existir profissionais especializados. O teatro grego era uma instituição cívica, um ritual cívico. Talvez esta ideia antiga nos falte e seja muito necessária: a percepção de quanto o teatro significa para dar corpo à vida do cidadão.
Os festivais trágicos (e os cômicos), em Atenas, custeados por coregas, cidadãos ricos que desejavam imortalizar a sua grandeza, reuniam textos de autores devotados a focalizar as inquietações da época, em particular, no caso das tragédias, os grandes temas da mitologia. Em 472 a.C., Ésquilo venceu o festival com uma trilogia – cada autor devia se apresentar com um conjunto de 3 tragédias, encerradas com um drama satírico. A única das tragédias desta trilogia que chegou até hoje é, justamente, Os Persas.
Ressalte-se que Ésquilo foi contemporâneo de Clístenes e Péricles – portanto, viu a democracia ateniense se estabelecer. A peça, dá para esboçar alguma coisa aqui, oferece reflexões importantes a respeito da relação entre indivíduo e poder. Aliás, os principais políticos gregos, personalidades de grande envergadura cívica, autênticos estadistas, faziam questão de participar nos festivais. Ocupavam com frequência a função de corega, isto é, usavam a sua fortuna pessoal a favor da cultura da cidade.
No texto de Os Persas, Ésquilo trouxe uma inovação importante, ao tratar não de um tema mitológico, mas de um assunto presente. O personagem principal é um homem, Xerxes, o grande rei inimigo derrotado pelos gregos. O texto expõe a afronta aos deuses feita pelo rei, ao desafiar as leis da natureza, e ousa bastante, ao sugerir uma ligação indissolúvel entre a infelicidade de um indivíduo e o sofrimento de todo um povo. Sugerir a reflexão sobre este texto num instante em que, de certa forma, somos todos persas, é uma vitória cultural grega monumental.
E tem mais coisa neste coquetel. Há um sabor especialmente tocante para o paladar do universo brasileiro. O que se deseja destacar é esta ideia, do diálogo entre o teatro, o dramaturgo, o tempo vivido e o cidadão. Está implícita nesta relação a função do teatro, a missão da arte. Os políticos ignorantes e preguiçosos deviam se esforçar um mínimo para reduzir a sua péssima fama para a posteridade simplesmente examinando um pouco este caso. Fica evidente, nele, que os artistas são uma necessidade social antiga, materializam uma necessidade profunda, a necessidade de conversar sem reservas com a alma humana.
Portanto, eis aí o que é o autor, o dramaturgo. A rigor, uma das piores partes da tragédia do teatro no Brasil é a falta total de apoio ao autor nacional. O descalabro que nos assola tem uma dimensão tão absurda que a SBAT, entidade fundada em 1917 pelos autores para fortalecer a prática da dramaturgia, foi implodida por péssimas gestões. Deveria receber socorro do governo federal para a sua recuperação, não fosse por sua importância cultural, no mínimo por causa do notável acervo documental que abriga.
Mas cultura parece ser algo que causa horror aos políticos brasileiros e nenhum discurso, dos poucos proferidos em Brasília em favor da fortuna cultural brasileira, ecoa de verdade no deserto de ideias que vegeta no Planalto Central. Parece lugar comum, mas é fato – a ignorância geral é o bem mais cultuado pela política brasileira.
A consequência é direta – por aqui, não sabemos dizer o que é um autor de teatro. E tal não se dá em função de poéticas revolucionárias do século XXI, dispostas a mudar a estrutura e a economia do fazer teatral. Nada disto – isto acontece por ignorância mesmo, plana e chã.
Perseguindo a obra de Artur Azevedo (1855-1908), precioso autor maranhense que o Rio aclamou como o primeiro espírito carioca moderno, consegui ainda outro dia uma tradução de Molière assinada por ele. O livro velho e sofrido chegou, apesar da pandemia, e me trouxe várias alegrias. Além do texto, estava lá, na condução do Instituto Nacional do Livro, o nome de José Simeão Leal (1908-1996), um dos grandes administradores culturais deste país, responsável pela edição.
Quer dizer – há o que fazer para mudar o cenário e bastam ações bem simples, de largo alcance. Em Curitiba – para usar um exemplo bem prosaico – vi num shopping center rico poesias brasileiras estampadas nos tapumes das lojas fechadas. Fiquei entre a surpresa e a alegria. Concursos literários, prêmios de dramaturgia, editais de apoio ao autor nacional, múltiplas formas de ação precisam ser acionadas.
Precisamos de mais poesia, mais autores, efervescência de palavras. E, claro, pensamento. Ver as obras dos autores brasileiros difundidas e valorizadas, honestamente, seria uma vitória nacional aparentada à da Batalha de Salamina. O derrotado seria o inimigo número um do Brasil, o inimigo número um do autor nacional e da poesia brasileira: seria a ignorância. Ela faz com que o autor teatral brasileiro seja um fantasma triste, filho da omissão com o desconhecimento.
SERVIÇO
Para mostrar que o culto ao autor-dramaturgo existe e vai muito bem – não se trata de velha prática grega – ofereço a indicação para curtir uma montagem do primeiro texto de um dos dramaturgos maiorais da nossa época. Revela um grupo de teatro de pesquisa, arrojado, mas que preza a história da dramaturgia.
Não, não é no Brasil: a montagem é do Wooster Theater, Nova Iorque.
Até 10 de Agosto, é possível ver a produção do grupo do texto The Room, de Harold Pinter, escrito em 1957.
A gravação foi feita na Performing Garage sem plateia no dia 20 de novembro de 2015.
Direção: Elizabeth LeCompte
Elenco: Ari Fliakos, Philip Moore, Scott Renderer, Suzzy Roche e Kate Valk.
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