High-res version

Nós, as Marias

Ou A hora e a vez do autor nacional

Há um mistério intrigante no palco brasileiro. Na verdade, há um fantasma. Ele se chama autor nacional. Ou dramaturgo. Impressiona o fato do autor teatral brasileiro existir assim, ser algo classificável na categoria assombração.

E, no entanto, escreveram para o teatro homens poderosos da elite social brasileira, em particular no século XIX. Por que será que, bacharéis, juízes, togados e coroados, eles não conseguiram elevar esta sua outra ocupação à altura de uma tribuna de juiz?

Não, os textos não são ruins, não se trata de uma dramaturgia falha ou precária, escrita para ser esquecida. Muito ao contrário, até. Temos um tesouro escondido nas paredes desta ruína chamada pátria. O Brasil conta com uma estante de peças teatrais de bela extensão – no sentido de que a beleza artística aí se apresenta sem timidez. Então, que passa?

A autoria teatral segue enredada na falta de horizonte social definidora do país. Se o verbo aqui não é livre, não faz com que o cidadão erga a voz e expresse a sua identidade, como ter uma dramaturgia de repercussão? Se a ação social acontece presa numa rede de preconceitos e de práticas de casta, como desejar ver a ação livre de cidadãos no palco?

Mas não precisamos esperar a mudança do país e da realidade para ver este teatro nosso acontecer. Atitudes simples podem ser decisivas. Trabalho pequeno, de formiga, capaz de fazer desabar uma muralha. O ponto de partida deve ser a consciência do problema e do seu peso contra nós. E o reconhecimento do que se faz. A partir daí, tanto ações isoladas como a formação de coletivos podem funcionar para a mudança do cenário geral.

O problema está longe de ser simples. E existe algo no seu interior ainda mais estarrecedor: a dramaturgia feminina brasileira. Aí encontramos algo abaixo da categoria de fantasma: simples almas penadas. Se os autores, homens, acumulam poeira no limbo, apesar da sociedade machista e homofóbica, como descrever a situação da dramaturgia feminina no Brasil?

Contamos com mulheres escritoras de alto padrão desde o século XIX, sem falar no nome lendário de Chiquinha Gonzaga (1847 – 1935). A pesquisadora Valéria Andrade Souto-Maior publicou um índice pela Editora Mulheres, de Florianópolis, com uma listagem de 54 dramaturgas para o período do século XIX. Se considerarmos a violenta opressão feminina em vigor então, o número é surpreendente.

Sim, o caso cheira a grosso escândalo se o olhar apurado se detiver no Rio de Janeiro. Aqui, em Parati ou  Angra dos Reis, em data ignorada, nasceu Maria Ribeiro, autora, a partir de 1855, de mais de vinte peças. Várias foram montadas e alcançaram boa repercussão, de público e de crítica. Gabriela, de 1865, e Cancros Sociais, de 1866, foram elogiadas por Machado de Assis. E por onde anda esta nossa Maria, ignorada pela cena carioca e brasileira? Letras vagantes!

É certo que a modernidade, a expansão feminina e a rebelião jovem, nos anos 1960, viabilizaram a projeção de uma bela geração de dramaturgas e de suas obras. Leilah Assunção, Consuelo de Castro, Renata Pallottini, Hilda Hilst, Isabel Câmara, Maria Adelaide Amaral marcam um momento histórico peculiar, em que existiu talento, espaço e repercussão. Uma grande vitória, mas… onde elas estão?

Pois é, nem mesmo estes nomes e as suas herdeiras mais recentes, figuras atuais, alcançam lugar de conforto no palco do nosso tempo. Escrever, guardadas as devidas proporções, parece ser coisa fácil, encenar é que são elas. Não existe acesso fácil ao palco. Não contamos com uma rotina de apresentar as vozes femininas nacionais na cena.

Fico pensando como seria bom e revolucionário se mulheres empresárias decidissem bancar um teatro carioca feminino, uma pequena casa dedicada à encenação de peças escritas por mulheres. Um ninho para chamar de nosso. Para ampliar o colorido da Garota de Ipanema: nem só de praia, biquíni, bronzeado, cabelão e bumbum vive a sensibilidade do Rio de Janeiro.

Não é um sonho impossível. Romperia uma parte da linha imaginária de interdição da cena brasileira enquanto expressão social. Por enquanto, a linha, de arame farpado, é  tão inflexível que sequer permite o debate acerca da dramaturgia nativa.  Aliás, parece comum, no Brasil, o dramaturgo se transformar em diretor, para conseguir a montagem dos seus textos.

Os exemplos estão por toda a parte: João Bethencourt (1924-2006), Paulo César Coutinho (1947-1996), Flavio Marinho, para ficar numa lista rápida. No conjunto da classe teatral, este é o segmento mais sofrido, pois, quando fracassa, não tem como recuperar o investimento perdido com a montagem de uma pecinha comercial, uma comediazinha divertida de sucesso certo, como atores e diretores podem fazer.

O mais patético é que existiu, no universo da dramaturgia, um aceno de esperança – a SBAT teria sido a casa do autor e uma célula-base para a organização da arte estruturada a partir do texto. Mas foi uma ilusão triste e a ilusão de poder consertar a situação da dramaturgia, no país teatral, não durou um século. A SBAT quebrou, numa história até hoje intrigante, digna de mistérios fantasmagóricos.

Um grupo tenta arduamente recuperar a instituição – no ar, está a campanha para refiliação, adesão de autores, união de esforços para manter o funcionamento e reverter a crise. Haverá uma assembleia, no dia 28 de setembro, virtual, no interior de uma campanha intensa a favor da salvação da instituição. Vale acompanhar, colaborar, dar um voto de confiança.

Pois os autores seguem na luta. Eles não param de escrever. Alguns se apagam, abduzidos pela televisão. Mas existem uns guerreiros fiéis ao palco, incapazes de dedicar a sua alma a outra coisa, fiéis à vocação mal assombrada. A SBAT poderia ser um porto. Afinal, eles seguem.

O que os move? Por que são assim? Por quê insistem? É uma gente impregnada de sentimento, de amor ao ser no mundo, são movidos por uma imensa necessidade interior de expressão. Casaram com a poesia. Eles não vão parar, não conseguem parar. Portanto, o aconselhável é o mais simples: vamos ouvi-los. Eles têm algo a dizer.

Temos autoras atuantes no auge de sua potência criativa. Um caso exemplar? Daniela Pereira de Carvalho. Ela acabou de terminar um texto, A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, de alto impacto para o pensamento a respeito do feminino hoje. É lindo. Trata-se de um redemoinho afetivo de referências básicas a respeito da mulher no nosso tempo, escrito com uma concisão verbal admirável. Uma aula de teatro, no sentido melhor da expressão, de peça bem escrita e urgente.

O eixo é a relação mãe-filha, com todas as suas implicações – amor, sexualidade, vida profissional, repressão, diálogo… A notícia excelente é que o original está em pré-produção, para nos surpreender quando a pandemia passar. Duas atrizes virtuosas absolutas na arte estão engajadas no projeto: Guida Viana e Silvia Buarque. A direção está prestes a ser definida. É para comemorar.

Mas há muito mais pulando na praça teatral, pipoca perde. Ou fogo-fátuo. No formato teatron, a semana verá nesta sexta a estreia de A Protagonista, espetáculo transposto para o formato virtual. A estreia estava programada para o início do ano no SESC Tijuca, mas foi impedia pela quarentena da covid-19.

Também aqui há um intrincado de temas femininos, com dramaturgia de Juliana Soure e Renata Sofia. O jovem grupo Coletivo Paralelas, no seu terceiro espetáculo, participou do processo criativo. A supervisão geral coube à premiada diretora Miwa Yanagizawa.

A proposta dá continuidade às pesquisas desenvolvidas em Piranha não Dá no Mar. O foco é o aprofundamento do uso do jogo como recurso cênico, ao lado da reflexão sobre os agentes voltados para limitar a livre atuação da mulher na sociedade.

Finalmente, uma outra produção marca a semana com o tema do feminino no universo teatral. Ainda na sexta-feira, Irene Ravache reapresentará o solo Alma Despejada, de Andréa Bassit, com transmissão ao vivo e acesso gratuito, mais uma atividade da programação online do Instituto Usiminas. No canal da empresa no Youtube, a peça estará disponível até dezembro.

A apresentação do trabalho dirigido por Elias Andreato integra a série Espetáculo de Teatro, espaço cultural da empresa que já recebeu Galileu e Eu – A Arte da Dúvida, com Denise Fraga. Em Alma Despejada, a inquietação feminina marca presença de forma muito eloquente, cortante.

A trama aborda a história de Teresa, uma professora de classe média, morta, que visita pela última vez a casa onde morou. Trata-se de uma alma despejada porque o imóvel foi vendido. Apaixonada pelas palavras, imersa em memórias, Teresa transita entre fiapos do passado e do presente, evoca com poesia e humor o casamento com um homem simples que enriqueceu, os dois filhos do casal, o outro lado da vida, as amizades, as relações sociais.

A dramaturgia de Andrea Bassitt, elaborada em 2015 especificamente para Irene Ravache, é marcada por um agudo senso de teatralidade. Impregnando o fluxo dramático com muita emoção, uma marca peculiar da autora, ela instiga o espectador a travar uma sintonia fina com a cena, mesmo que o ponto de partida pareça ser algo trivial.

A chave é esta: uma história de fantasma povoada por fantasmas, tecida sob um tom agudo de valorização do teatro naquilo que ele possui de mais contundente, o tratamento desabrido da emoção. Portanto, comemoremos: neste nosso castelo mal assombrado chamado Brasil, está ao dispor do público mais um fantasma ilustre, de alta estirpe.

Afinal, o enigma chamado teatro do Brasil segue a sua trajetória de morto-vivo. Apesar dos obstáculos, sempre imensos, a arte aparece diante de nós, as letras não param, as cenas se seguem, o teatro insiste e consegue ser. Uma nesga de esperança alivia a compressão geral. Quer dizer, um luxo.

Dê uma olhada na agenda da semana, ela está bem movimentada. Aqui temos apenas uma amostra. A programação é de alto padrão. Então, faça a sua parte, não perca: tomara que você entenda, diante da tela, como é importante lutar para que a nossa dramaturgia, em particular a dramaturgia feminina, escape da condição melancólica de fantasma. Já é tempo de sonhar com a vida fora desta nossa estranha condição de cemitério social.

Serviço:

Campanha: SALVE A SBAT

Campanha por Renovações de Anuidades, acompanhada por várias maneiras de colaborar (adesão ao movimento, participação na campanha, doação de bilheteria de evento virtual a ser divulgado pela SBAT)

Divulgação de evento: Contação de Histórias on line RAPUNZEL Núcleo de Ensino e Pesquisa de Artes Cênicas (NEPAC) de Niterói, RJ com Raquel Penner, direção de Leonardo Simões.

Dias 19 e 26 de setembro  às 16 horas.

Ingressos: 10 reais ( Sympla). Metade da renda será doada para a SBAT.  https://www.sympla.com.br/rapunzel—contacao-de-historia__970036.

 Renovar filiação: cadastro@sbat.com.br (para todo o país) ou em sbatsp@sbat.com.br  (São Paulo, capital e interior) 
ASSEMBLEIA GERAL DA SBAT: DIA 28 DE SETEMBRO de 2020

 Página oficial da SBAT no Facebook https://www.facebook.com/sbatoficial e no Instagram @sbat100anos

 “A Protagonista”

Serviço:

Temporada: de sexta a domingo, às 20h, de 18/9 a 11/10

Gratuito – Classificação indicativa: 14 anos

Duração: 60 minutos

Formulário para participação: disponível na “Bio” do Instagram do Coletivo Paralelas (@coletivoparalelas) ou por meio de solicitação ao e-mail contato.coletivoparalelas@gmail.com.

OBS: No formulário, espectador informar o dia que deseja assistir. O link/ID de chamada na plataforma Zoom será disponibilizado 1 hora antes de cada apresentação.

Ficha técnica

Criação: Carol Babosa, Juliana Soure e Tatiane Santoro

Direção: Juliana Soure

Orientação artística: Miwa Yanagizawa

Direção audiovisual: Laís Dantas

Dramaturgia: Juliana Soure e Renata Sofia

Roteiro audiovisual: Renata Sofia

Elenco: Aliny Ulbricht, Carol Barbosa, Rosa Nogueira, Tatiane Santoro

Atrizes convidadas: Bárbara Assis, Bárbara Jordão, Caju Bazerra, Dani Anatólio,Débora Crusy, Fernanda Dias, Gabriella Cristina, Gabriela Estolano, Geandra Nobre, Lidiane Oliveira, Rebecca Gotto e Vika Flôr

Orientação teórica: Pâmela Carvalho

Preparação corporal: Camila Rocha

Iluminação: Nina Balbi

Figurino: Carla Costa

Mídias, design gráfico e fotografia: Franco Albuquerque

Direção de produção: Mariana Rego

Produção executiva: Julia Abreu

Assessoria de imprensa: Duetto Comunicação

Wando Soares Relações com a Imprensa

Realização: Coletivo Paralelas

LIVE – Alma Despejada

 Ficha técnica

(Produção original, estreia: setembro de 2019.

Com: Irene Ravache.

Texto: Andréa Bassitt.

Direção teatral: Elias Andreato.

Fotos: João Caldas Filho.

Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação. Produção: Oasis Empreendimentos Artísticos.

Serviço

Espetáculo: Alma Despejada

Com Irene Ravache

Dia 18 de setembro. Sexta, às 20 horas

Classificação: 14 anos. Duração: 80 minutos. Gênero: comédia dramática.

Grátis. Assista online: 

Youtube: https://www.youtube.com/c/UsiminasOficial/

Facebook: @institutousiminas

Mais informações: http://www.institutousiminas.com/