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Dramaturgia, quem é você?

A pergunta, por aqui, não sai de cena. Do século XIX até hoje, temos um palco que busca alucinado entender o que é o autor ou dramaturgo, aquele tipo de ser que escreve peças.

Sim, há um debate bem complicado neste meio de campo, mais enrolado do que jogo de time em revolta contra o técnico. O primeiro problema é a definição em si de “autoria” – afinal, desde Foucault até Roger Chartier os estudos literários enfrentam a pergunta espinhosa: o que é um autor?

No teatro, no mínimo desde o renascimento, quer dizer, desde os primeiros tempos modernos, a letra e a cena enveredaram por um namoro tórrido. Quer dizer, se falarmos na commedia dell’arte ou em Shakespeare ou em Molière ou em Goldoni, para ficarmos com uma lista vip eletrizante, a promiscuidade entre tablado e papel precisa ser o ponto de partida para qualquer estudo. Ou não entenderemos nada.

Curiosamente, foi neste período que teria sido definida, nas palavras de Foucault, a “função autor”, no seu entendimento uma construção social cara à dinâmica do capitalismo. No caso do teatro, contudo, a visão do tema convida à polissemia, pois, ainda que se tenha consagrado a prática de atribuir aos textos uma assinatura e um recolhimento de direito autoral, o palco foi e é um lugar de contágio.

Quer dizer – na rotina teatral corrente, parece muito difícil pretender a existência de autores puros, intocados. Mesmo quando um autor escreve trancado no seu gabinete, com os olhos virados para si, a sua mente irá vagar pelas cenas do seu tempo e, o mais contaminante dos recipientes, as suas ideias flertarão com o temperamento dos atores em atividade.

Até mesmo na obra dos autores de gaveta, aqueles nunca encenados, autores encerrados nas suas folhas de papel, alguma coisa do palco do tempo ao redor transpira, nem que sejam singelas referências temáticas ou anedóticas. De alguma forma, desejar escrever para o teatro já trai uma conexão com a cena.

Um tanto mais além, importa observar que, no caso do teatro, existe a condenação dialógica, digamos: quem escreve dramaturgia mantém um diálogo permanente com a realidade ao redor. E nela irá colher tipos, sentimentos, ideias, situações, conflitos. Neste sentido, constatamos sempre que a maioria dos textos de teatro de uma época determinada “envelhece”, não consegue extrair do diálogo com os contemporâneos tiradas capazes de apaixonar os herdeiros teatrais do futuro. Sob um certo ponto de vista, o teatro é um cemitério de letras.

Quando reconhecemos que a autoria dos textos teatrais acontece neste lugar em trânsito e revela um ser datado, preso a uma época exata, mas que, às vezes, tem fôlego para vencer o tempo e os limites da aldeia, constatamos a absoluta necessidade de estudar dramaturgia. Alguns autores se tornam senhores do tempo e conquistam o direito de dialogar com o mundo.

De certa forma, a dramaturgia é a voz do seu tempo, materializa intensamente o que se passa nas falas sociais. Nos estudos teatrais, os estudos de história da dramaturgia desvelam as nossas formas históricas de ser e, neste caso, sob este ponto de vista, os velhos autores nunca se revelam como poetas ultrapassados. Suas páginas trazem uma luz a respeito de nós.

Por isto soa tão absurda a realidade brasileira de educação e de cultura: não temos o hábito do estudo da dramaturgia, mesmo nas escolas de teatro. Em muitas turmas de artes cênicas, um delicado convite para estudar Gil Vicente ou Antônio José da Silva pode se transformar num embate um tanto surdo, como se a proposta contivesse um quê de violência contra criaturas indefesas de uma era nova, liberta e feliz. Qual a razão para mergulhar em tais velharias?, é o brado revoltado de muitas das vítimas indefesas.

Talvez esta altiva indiferença diante do autoconhecimento explique bastante a brutal violência que estrutura a sociedade brasileira. Se não temos o costume de contemplar nossa imagem mais profunda e perguntarmos abertamente sobre a penúria de humanidade que nos habita desde sempre, não podemos construir caminhos para ultrapassar este abismo. Gil Vicente sequer contava com palcos para se apresentar, pouco sabemos a seu respeito, Antônio José morreu na fogueira da Inquisição.

Portanto, é espantoso o quão pouco conhecemos de nossa dramaturgia. Recentemente, passeando os olhos por jornais do século XIX, constatei a presença de inúmeros dramaturgos desconhecidos. Não fiz uma pesquisa extensa, mas deparei com fatos fortes o suficiente para desejar que conquistemos um espaço de pesquisa bem mais amplo do que o que nos cerca hoje. Qual o detalhe mais arrasador desta trama?

Vários textos citados nos anúncios dos jornais, nas listas das peças em cartaz, simplesmente não existem mais, não foram preservados em nenhum dos grandes centros de documentação e bibliografia. Jamais voltarão a ser lidos. Vários autores celebrados de alguma forma nos diários são nossos absolutos desconhecidos.

Sim, houve uma febre teatral no século XIX brasileiro. Tomados por ela, juristas, advogados, médicos, literatos de outras praias, personalidades várias do mundo social desposaram as letras de palco. Talvez contassem com elas para contabilizar uma fortuna de reconhecimento. Bem, não deu certo, eles desapareceram da memória do país e das estantes.

Um caso me prendeu a atenção bastante tempo – um texto de José Ricardo Pires de Almeida (1847-1927), de 1862, Os Mártires da Liberdade ou A Conjuração de Tiradentes. Sim, ele é nome de rua em Laranjeiras, mas pouco se sabe a seu respeito. Nunca imaginei que pudesse existir tal peça no auge do império, época na qual Tiradentes não era herói.

Bom, é mais fácil ser nome de rua. Tentei muito achar a peça, sem sucesso; se alguém tiver uma cópia, desejo muito lê-la. Um detalhe curioso, um bom motivo para uma pesquisa detalhada a respeito do autor: segundo Galante de Sousa, ele abandonou os estudos de direito para ser médico, escreveu obras muito curiosas em medicina. E tem uma história da educação no Brasil que pretendo ler, quando encontrar um exemplar fora da loucura de preços que anda grassando na estante virtual.

Assim como os seus colegas de século letrados e intelectualizados, Pires de Almeida na certa pretendia reformar o país. O que será que ele pensava a respeito da escravidão? No inventário de Sousa, constam mais de vinte peças, cerca da metade publicadas; há uma peça O Mulato e uma peça O Tráfico, dramas, ao que parece não editadas. Poucas são as notícias de encenação.

Um outro belo estudo, importante para o teatro, seria dimensionar a interlocução entre os textos teatrais, o contágio de ideias entre os autores. Os grandes intelectuais da época e vários estudiosos falam dos males causados pelos gêneros ligeiros – no entanto, quando se olha o panorama das obras dos anos 1840-1860, constata-se a escassez de dramas, a raridade total de tragédias e a profusão de comédias, um fluxo contínuo de riso cuja essência ainda não conhecemos.

Não é que não exista na cena brasileira o hábito do estudo de dramaturgia. O fato é que, em geral, lidamos com a dramaturgia de uma forma imediatista, instrumental, estritamente voltada para a sua vida de palco. Claro, é importante, esta precisa ser uma rotina permanente de formação. Mas, ao seu lado, seria muito inteligente contarmos com a visão das aventuras letradas do passado…

Na atualidade, os estudos exaustivos de dramaturgia costumam acontecer com mais frequência em São Paulo. O CPT SESC, por exemplo, está anunciando para os meses de julho e agosto uma residência artística voltada para artistas da cena que tenham interesse no teatro épico-dialético. A iniciativa acontecerá em parceria com o diretor Sérgio de Carvalho e a Companhia do Latão, profissionais profundamente conhecedores desta linha de trabalho.

O ponto de partida do estudo será o texto A Compra do Latão, de Bertolt Brecht, original responsável pelo nome do grupo. Portanto, está embutida na proposta uma preocupação forte com a dramaturgia, a partir de uma visão do teatro ancorada profundamente na poética das palavras. Mas, por ser uma investigação cênica de ordem prática, na verdade, a residência vai explorar três caminhos complementares – atuação, dramaturgia e música.

Para participar, os candidatos devem fazer uma pré-inscrição, de 21 a 28 de junho, no site www.sescsp.org.br/cpt – um formulário on-line conduzirá o processo; mais detalhes a respeito dos procedimentos previstos para a seleção podem ser vistos no site. Apesar da necessidade de escolha de uma das três áreas, os trabalhos serão realizados num grupo único, em sintonia com a ideia de coletivo, cara a esta modalidade de teatro. A partir do dia 05 de julho será divulgada a lista dos inscritos.

Sem dúvida, vale sonhar: nunca o teatro brasileiro precisou tanto dos nossos sonhos como agora. Além deste tipo de oficina dinâmica dedicada à formação, um formato de estudo com extrema adequação ao nosso tempo, em que a dramaturgia aparece na prática, inspirada pela teoria, e em que se explora a melhor carpintaria para a cena, precisamos de História.

Seria importante ampliar os nossos conhecimentos a respeito do passado, entender mais profundamente a avalanche de teatro que percorreu o século XIX, desembocou no início do século XX  e em boa parte se perdeu. Este teatro navegou apenas na superfície da sociedade e, hoje, este nosso palco de cada dia com plateia tão escassa é seu filho?

Suponho que as universidades e os cursos de teatro deviam contribuir trazendo estes textos voláteis para a cena, em encontros de estudos e leituras, para inscrever na História objetiva da sociedade estes exemplares de um tempo em que se lutava a favor das palavras e contra a força da encenação.

As opções são tão inúmeras quanto os autores perdidos. Existe um texto adorável que seria oportuno apresentar aos estudantes das escolas – A Canção Dentro do Pão, de Raimundo Magalhães Jr.. A peça funcionaria bem para apresentar a plateias jovens o Teatro Raimundo Magalhães Jr., da Academia Brasileira de Letras – para ficarmos apenas num exemplo.

Na enorme lista de peças de Pires de Almeida, destacam-se títulos ligados aos costumes sociais e dedicados à palavra liberdade. Alguns temas históricos revelam escolhas surpreendentes. Então, vale destacar um dado curioso. Ao lado de uma figura dotada de tintas tão eruditas, a passagem do tempo também varreu para longe das memórias coletivas a verve do ator Vasques (1839-1892), um ser de teatro notável por escrever cenas e peças, inventar músicas, dialogar diretamente com o seu público, talvez envolvido, sem saber, num teatro épico avant la lettre…

Pois é. Entre tantos tons variados, por vezes extremos, perambula o teatro brasileiro: para nós, definir dramaturgia com certeza pode ser um belo convite. Um convite para encontrar este nosso desconhecido íntimo chamado teatro.  

 

Fotos: Cenas do espetáculo O mundo está cheio de nós; Cia do Latão, crédito: João Maria 

Serviço  

Residência de Teatro Épico-Dialético: atuação, dramaturgia e música 
com Sérgio de Carvalho e Cia. do Latão 

12/7 a 18/8, terças, quartas e quintas, das 14h às 17h  

Público: pessoas interessadas em atuação, dramaturgia e música.  

Valores: R$$160,00 (inteira), R$80,00 (meia-entrada) e R$ 48,00 (credencial plena) 

Espaço CPT (7º andar) | Sesc Consolação  

Vagas: 30    

Indicação: Não recomendado para menores de 18 anos 

Pré-inscrição para o Processo Seletivo  

De 21/6, às 14h a 28/6, às 14h, em www.sescsp.org.br/cpt  

Na pré-inscrição, os candidatos podem escolher sua área de interesse, devem escrever sua carta de apresentação e carta de intenção nos campos de preenchimento on-line, enfatizando sua relação com a área escolhida, e inserir o link de acesso ao vídeo*, armazenado em alguma plataforma (YouTube, Vimeo etc.).    

Divulgação do resultado    

05/7: O resultado da seleção será enviado por e-mail para os pré-inscritos e divulgado no portal Sesc SP.   

Confira a programação completa em www.sescsp.org.br/cpt e nas redes sociais:     

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