
Pare de sonhar com os céus e com o Olimpo. Para ficar frente a frente com uma deusa, não é necessário tanto esforço, a coisa é simples. Vá ao Teatro Poeirinha conferir a nova estreia da casa – Paixão Viva, recital-depoimento intimista da sensacional Ítala Nandi. Definitivamente, uma deusa.
A cena despojada sugere um espaço de estar – quer dizer, de bem-estar. Um tapete, uma penteadeira, uma cadeira elegante, uma tela, um cabideiro com adereços diversos compõem a área de ação. A cena foi concebida como um lugar para aconchegar pessoas queridas, o público, que é convidado por Ítala Nandi para acompanhar uma carreira das mais notáveis na cena brasileira contemporânea.
A sala aparece como uma nuvem existencial, banhada pela iluminação de Gabriel Lagoas. Uma meia penumbra delicada envolve a plateia, sem omitir as presenças; propicia um clima para confidências, destacadas aqui e ali por focos discretos de luz. Há tanto o relato, como o diálogo com pessoas do passado e projeções.
A história de vida da atriz é bastante surpreendente, pois não está marcada pela predestinação ou por uma deliberação pessoal para brilhar. De certa forma, Ítala Nandi se tornou deusa porque foi escolhida pelos deuses do teatro… Nascida no Rio Grande do Sul, na colônia italiana, a atriz não tinha qualquer pretensão a respeito da arte. Por acaso, foi encontrar uma amiga que fazia teatro amador e, sem que se desse conta, foi “testada” para um papel e… escolhida!
Ainda assim, o teatro não ingressou de imediato na sua vida. Tornou-se contadora, manteve a atuação no teatro amador de Porto Alegre, mas seguia a vida profissional. Começou a namorar Fernando Peixoto (1937-2012), já um homem de teatro atuante no jornalismo e no palco amador, e o casamento conduziu o casal à mudança para São Paulo.

Enquanto o marido ingressava no Grupo Oficina, ao lado de José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi, Ronaldo Daniel e Etty Frazer, a jovem prosseguia na sua carreira. No entanto, as idas ao Teatro Oficina logo solicitaram a sua adesão à causa – primeiro, ela colaborou com a sua experiência administrativa e contábil. Depois, em 1962, na montagem de Quatro num Quarto, de Kataiev, direção de Maurice Vaneau, a atriz Rosamaria Murtinho adoeceu e, para substituí-la, Ítala foi convocada… às pressas!
São muitas histórias: afinal a peça foi concebida para comemorar os 65 anos de carreira da atriz. Vale trazer aqui este pequeno recorte apenas para revelar o tom da cena, exatamente o desejo de expor com nitidez a paixão profunda que a levou ao palco e que a mantém em comunhão profunda com o teatro. Por ter começado quase por acaso, a atriz se tornou uma estudiosa fiel da cena. Assim a comunhão virou uma forma de vida. Até hoje.
Portanto, o melhor de tudo é deixar a voz da atriz – e que bela voz ela tem! – contar a fina trama de encontros, amores, desencontros. A trama fina, mas densa, que a envolveu com delicadeza por todo esse tempo, arrebata a plateia para o centro da ação. É uma experiência existencial muito gratificante, com certeza.

O teatro também propiciou o seu ingresso no cinema, com uma carreira notável, e na televisão, veículo em que a sua presença foi mais reduzida, com apenas três novelas. Todavia, ela esteve na histórica telenovela Que rei sou eu?, de 1989, e o seu papel, a taberneira de ares ciganos Loulou Lion, diz muito da lenda sensual que envolveu o seu nome a partir do teatro.
Ítala Nandi foi responsável pelo primeiro nu feminino em cena no teatro brasileiro, na peça Na Selva das Cidades, de Brecht, montagem do Oficina de 1969. O episódio não fez com que ela se transformasse num mito sexual banal, mas sim elevou-a à condição de mulher livre, senhora de si e do seu corpo, uma precursora de muitas lutas femininas.

Quer dizer, além de sensualidade, a atriz é feita de coragem. Em cena, no delicado espaço construído no palco do Poeirinha, sob a direção cúmplice de Evaldo Mocarzel e a singela direção de arte de Fernando Scarpa, Ítala Nandi solta a voz e fala de temas tabus com naturalidade.
Ela fala – e como é raro ver esta ousadia saudável por aqui! – das restrições importantes que faz à arte do celebrado diretor José Celso Martinez Corrêa, com frequência desmedido e desprovido de humanidade nos ensaios. E celebra com muito amor a grandeza do mestre Eugênio Kusnet, gênio da arte do ator em nosso país, hoje quase esquecido.
Contudo, apesar do encanto do espetáculo para a tribo de teatro, sobretudo para os estudantes de teatro, não se trata de encontro de iniciados, conversa entre amigos, festa de patota. Não se iluda, pois trata-se de uma oportunidade que não pode ser perdida: é pura poesia humana para todos.
O notável do espetáculo de Ítala Nandi é a potência da atriz para baixar à terra, estar entre todos, demonstrar a humanidade dos deuses, a necessidade premente que nos cerca, hoje, de conversar sobre a vida, estar em união.
Então, o caso é simples: não deixe de ver. É um fato raro, a chance de vivenciar memórias que são de todos, pertencem ao palco-Brasil e ao país, mas que têm como protagonista uma criatura iluminada, simplesmente uma fantástica deusa do teatro…

FICHA TÉCNICA
Texto: Ítala Nandi e Evaldo Mocarzel
Interpretação: Ítala Nandi
Direção: Evaldo Mocarzel
Direção de Arte: Fernando Scarpa
Figurino: Anna Ruckert
Assistente de direção: Guilherme Scarpa
Luz: Gabriel Lagoas
Produção: Dobbs Scarpa
Projeções e edição de imagens ao vivo: Mauricio Souza
Fotos: Felipe O’Neill
Realização: Evaldo Mocarzel, Ítala Nandi, Fábio Dobbs e Guilherme Scarpa
Assessoria de imprensa: Dobbs Scarpa
SERVIÇO:
Temporada de 1º de maio a 29 de junho.
Quinta a sábado, às 20h. Dom, às 19h.
DURAÇÃO: 90 minutos
CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: 14 anos
Ingressos:
R$ 120 (inteira) e R$ 60 (meia)
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CAPACIDADE: 50 pessoas
Teatro Poeirinha.
Rua São João Baptista 104, Botafogo.

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